terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Quero dar-vos de beber. Um copo de vinho, generoso, dócil. Não tenhais receio se a avidez tomar conta das vossas gargantas. Dir-vos-ei palavras-cacho, servas da vossa sede, como na vinha do Senhor. Façamos um brinde. À anunciação do filho, que o meu ventre tratará de gerar, como uma paisagem à janela da carruagem que floresce olhos dentro. Gosto muito de andar de comboio. Cabem-lhe tantas histórias, daquelas que se amparam no colo, como a um recém-nascido. Tantos órfãos ali jogados nos assentos, um choro inaudível corre-lhes à pele. Deixai-me abraçar-vos, na impossibilidade de acorrer a todos os enjeitados. Um novo copo, a reverberação do cristal, o brasume dos corpos como toros à lareira. As velas deste lar ardem para lá do fim, acende-as um sopro das bocas que se dão na eternidade.

Ouvis o berreiro? É o choro do meu filho acabado de nascer. Gerou-o o cheiro da terra humedecida pelo orvalho nocturno. Como é intenso e alegre e reconfortante. Bebamos.

Sou um homem-vide. Podo-me e enxerto-me e logo novos rebentos brotam. Estou-vos grato pela chuva e pelo sol que me trazeis nas faces das mãos. Amei uma mulher logo a partir das mãos. As linhas traziam-me a seiva de todas as viagens a que é necessário fundarmo-nos. Ainda a amo, porquanto nunca se parte desse lugar onde o ser se consubstancia. É uma profecia que a alma faz cumprir ao longo de várias vidas.

 Estão vazios os vossos copos. Deixai que se inclinem para a nascente, como o cálice para a vida eterna, como a boca do recém-nascido para o túmido mamilo do seio materno. 

Pelas gavetas há fotografias em que vestia as roupas de ver a Deus. Contudo, vi-o em mim quando apenas um lençol cobria a ressurreição do meu corpo. Vede as minhas cicatrizes. Não tenhais medo, só mordem por dentro. Continuam tão vivas como quando eram um golpe aberto. Como os veios que ainda sangram na terra em que as nascentes secaram.

Tenho de aprender uma canção de embalar. Nasceu o meu filho e não sei nenhuma. Não recordo alguma que me tenha sido sussurrada ao ouvido. Ah, uma canção de ninar. Houve uma criança que para adormecer o irmão tinha de lhe acariciar as pálpebras, como se estivesse a polir uma relíquia, invocando o senhor do sono. Como são preciosos os gestos da intimidade. Se nos desleixamos, ficam na eminência de cair, como a jarra na beira da mesa. Um pequeno tremor e estilhaçam-se em minúsculos cristais no chão, como lágrimas rebrilhando de dor.

Na verdade não sei o que tenho estado para aqui a dizer-vos. Sim, celebro a arte da amizade com o vinho. É cada vez mais um acto de coragem, o de nos embebedarmos dos amigos à mesa. Uma narrativa grávida de lentidão, como o gesto de esperar o fotográfico. A garrafa e os copos vazios, marcados de nós, lábios e dedos, serão a prova de que existimos para lá do instante.

Festas Felizes para todos

Hélder Magalhães


atropelamento

Quando eles dizem
"morreu rebentada por dentro"
querem dizer
que o coração se moveu do esquerdo
ao lado direito do peito
que o impacto se sentiu no pulmão
onde o coração entrou e ficou escondido
palpável à língua
Que o fígado acidulado por um último jantar
se lançou em espuma contra as costas
e negra da noite ao avesso
a caixa torácica perdeu o abaule
o orgulho
as flores como pétalas de osso quebraram
por todo o dentro de cinco sentidos
Em todo o caso o corpo
ficou incólume
sentado na estrada
desviado apenas do lugar
onde esteve o baque da alma

Andreia C. Faria, in Flúor