quarta-feira, 5 de dezembro de 2018
mãos frias coração quente uma coisa compensa a outra
Yes, I do believe in something. I believe in being warmhearted. I believe especially in being warmhearted in love, in fucking with a warm heart. I believe if men could fuck with warm hearts, and the women take it warmheartedly, everything would come all right. It’s all this coldhearted fucking that is death and idiocy.
D. H. Lawrence, Lady Chatterley's Lover
Ela disse-me que foi feita a partir de uma costela do meu corpo. isto é no mínimo duvidoso, se não mais que isso. eu cá não senti a falta de nenhuma costela...agora anda muito ralada com o abutre, diz que a relva não lhe cai bem; teme que não o nutra; acha que é suposto viver de carne putrefacta. O abutre tem que se safar o melhor que pode com o que há. Não podemos virar do avesso o plano inteiro só para acomodar o abutre.
(mark twain - os diários de adão e eva, 1906)
Hoje podes deitar-te na minha cama e contar-me mentiras - dizer, não sei, que o amor tem a forma da minha mão ou que os meus beijos são perguntas que não queres que ninguém te faça senão eu; que as flores bordadas na dobra do meu lençol são de jardins perfeitos que antes só existiam nos teus sonhos; e que na curva dos meus braços as horas são mais pequenas do que uma voz que no escuro se apagasse. Hoje podes rasgar cidades no mapa do meu corpo e inventar que descobriste um continente novo - uma pátria solar onde gostavas de morrer e ter nascido. Eu não me importo com nada do que me digas esta noite: amo-te, e amar-te é reconhecer o pólen excessivo das corolas, o seu vermelho impossível. Mas amanhã, antes de partires, não digas nada, não me beijes nas costas do meu sono. Leva-me contigo para sempre ou deixa-me dormir - eu não quero ser apenas um nome deitado entre outros nomes.
Maria do Rosário Pedreira
I shut my eyes and all the world drops dead;
I lift my lids and all is born again.
(I think I made you up inside my head.)
The stars go waltzing out in blue and red,
And arbitrary blackness gallops in:
I shut my eyes and all the world drops dead.
I dreamed that you bewitched me into bed
And sung me moon-struck, kissed me quite insane.
(I think I made you up inside my head.)
God topples from the sky, hell's fires fade:
Exit seraphim and Satan's men:
I shut my eyes and all the world drops dead.
I fancied you'd return the way you said,
But I grow old and I forget your name.
(I think I made you up inside my head.)
I should have loved a thunderbird instead;
At least when spring comes they roar back again.
I shut my eyes and all the world drops dead.
(I think I made you up inside my head.)
Sylvia Plath
mas ela não fez o sinal da cruz
ao atravessar a rua nem
habilitou o coração para a lição
cifrada do amor de Deus nas
entranhas de qualquer desgraça mas
ela deixou o jantar frio como
o hálito dele ou um estetoscópio ou
a fivela do cinto
mas ela deveria entender que
o touro investe contra o rubro por
instinto e um pedaço de carne
descoberto será sempre o superlativo
do vermelho mas ela leu
no jornal que ela teria gostado
e perguntaram “seu telefone estava no modo
silencioso quando sua irmã ligou?
porque, na página 53, eu gostaria de
frisar que você disse que ele estava
configurado para tocar. você bebia na
faculdade? você estava vestindo um cardigã?
qual era a cor do seu cardigã? você
se lembra de mais alguma coisa daquela noite?
não?” mas ela estava lá fora e era
madrugada e isso é um silogismo
mas seu corpo (todos eles) de novo
como território do colonizador
mas ela sabe pelo menos que
nunca em momento algum
ela nunca disse
sim
Diego Vinhas (procissão)
o lugar
mais antigo é esse onde morremos.
porque eu nunca estive cá. penso até que quando nasci quem me pariu foi assim uma enorme roda dentada. começou por dentar-me os pés. depois foi subindo. o ventre todo estraçalhado em metades de mim. arrancou-me o coração do lugar dele e deixou-me assim
uma espécie de músculo insone e roxo
que mais não faz que bombar sangue. pudesse ligá-lo a um compressor e ir bombar umas paredes. escrevinhar em todo o lado. roubar olhos. mãos. e graffitar em todo o lado. por exemplo
nesse lugar aí entre o teu peito e o teu ventre. essa parede onde o meu corpo poderia ter escorrido. deslizar um éme.
lentamente deslizar um éme. e depois com a língua buscar-te um ah! redondo, redondo, redondo,
em curvas nas curvas dos teus mamilos-
lenta
lentamente morder um érre na fronteira entre o teu desejo e
o teu sexo
e vir-me em águas
águas quentes
com as tuas águas
águas brancas e logo um
tê : ah! o meu nome bombado do nascer
ao morrer
do dia. ephemera. ephemera eternidade entre os teus braços.
mas o lugar mais efémero é onde nascemos. um mal
que carregamos connosco
como duas asas.
viajei muito de dia
correndo atrás de uma noite passada
aí
à beira do rio
onde tu disseste
entre malas e palavras
que as asas são mãos de largar, de fugir, de tocar e fugir. assim mesmo.
é. ter medo. acordar numa cama desconhecida num lugar nenhures
entre as mãos de afagar e uns olhos
grandes luminosos que dizem uma alma errante. e depois
sabemos dos segredos
insondáveis que nos escondem da morte. esses mesmo. e como
carregar as asas. como.
anda, dizes, fiz-te café. regressa aqui
a esta casa à beira de mim
e senta-te. hoje não há qualquer som que interrompa
a tua permanência. o silêncio tem é esta importância
de pequenos goles escuros
corpo de poeira e asas de aconchegar.
é um céu. um abismo do céu à terra. há entre um homem
e uma mulher
qualquer coisa de redondo céu. uma espécie de casulo.
e é preciso dizer que nem todas as borboletas
são poeira e nem todas as casas são à beira de um lugar nenhures.
não. não interessa. é que se esta não
é a casa do medo então
aqui
poro a poro
com a humidez toda feita carne
se erguem as paredes pernas
os tectos como seios e de chãos mãos. a convulsão de uma
casa algures
exactamente no lugar onde
os teus dedos a desenham polpa a polpa
numa impressão de digital importância
e a virtualidade de
ruas. caminhas por esse lugar como quem chupa o mel
de uma mulher: sôfrego
urgente. a urgência de chegar: e entras pelo meu corpo assim
como se sorvesses o tempo
ou o roubasses a esse casulo onde a metamorfose mais lenta
acontece: no meu ventre mel o teu sémen é leite e sei que não
vou morrer se me ensanguentar dele: uma espécie de imortalidade
está toda contida aí
na ponta mais perpendicular do teu corpo. gota a gota.
e não
sei mesmo se não escondes mais algum
segredo. vá, deixa que
me emprenhe dessa multicolor vontade
dessa poeira líquida que o corpo
resgata ao céu
um teu tempo que aperto entre as coxas: o teu
é um corpo molhado
e se me encharcares eu juro que a verdadeira
metamorfose
começa agora:
eu conheço-te e senti a tua falta? não sabemos. mas escrevemos, ainda assim. regressamos a essa solidão com que esperamos merecer, imagine-se, a companhia de outra solidão. escrevemos, regressamos. não há outro caminho. não há outro caminho
"cancela a minha subscrição para a ressurreição", digo também eu. com as asas no avesso da tua boca. e baby, foda-se se este não é o mal maior de todos: morrer à boca das palavras com asas de quem voa devagarinho dentro de qualquer coisa muito importante. antes mesmo de dizer.
é que
sempre me feri com a fala dos outros. por vezes ela assemelha-se muito a um estridente grasnar. não oiço.
encasulo-me. encasulo-me.
dizem coisas. muitas coisas. por exemplo
esta é a vida. a puta da vida. é a vida, coragem, coragem. melhores dias virão. tudo tem o seu lado positivo. pois.
a vida é a morte que a tem. digo eu.
mas eu estou doente. não estou de
perfeita sanidade.
o lugar comum dizem, como quem explica que o comum é o lugar de nós. não. a minha perfeita insanidade é circular. e abre-se de um casulo da memória do meu corpo com toda a urgência de acontecer. "cancela a minha subscrição para a ressurreição" se não te importas.
não tenho medo
: prefiro duas asas. entre o dia. e o fim.
Marta Cunha Caldeira
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