segunda-feira, 5 de março de 2018

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Nano-contos

praise the moustache
praise the one


não tenhas medo. hoje sei reconhecer o perfil das árvores e os seus cabelos mil tons de verde, sei ouvir os sons da terra e trago na pele a respiração de todas as marés. dormi muito tempo debaixo de luas incendiárias e aprendi todas as línguas do silêncio. não tenhas medo. cai o pano e eu deixo que recolha aplausos e flores. não me interessa. porque hoje já lhe consigo sentir, como nunca senti, o cheiro a longe; muralhas de vento e veludo vermelho a estrelar. cheira assim todos os dias, antes e depois do banho, feliz ou infeliz. cheira a leite coalhado e a locais de abandono. deve ser por isso que preciso tanto que me deixe onde escolhi morrer. não tenhas medo. hoje sei que há abraços que são falsos domingos e que as orquídeas sorriem como agiotas. e as palavras, espessas e transparentes, escorrem no tempo sem tempo, afogam-se entre os dedos, debruçam-se em declives, como se fosse âmbar ou certos poemas de onde nunca ninguém gostaria de sair para ver como são do outro lado. o problema é esse; a convicção de que existe outra morada habitada e o pior é que temos razão. não tenhas medo. o mundo não precisa de reinícios, só de silêncios em torno de si.

(Ana na Tarte)


  • Blemishes of Time II, 2009
LITANIA

Estava sentado numa sala anexa ao bloco operatório
e uma enfermeira passou com o teu útero num saco de plástico
transparente
Com o teu útero com a minha primeira casa e a de meus irmãos
ainda escorrendo sangue
Uma pequena construção toda em pedra
com divisões de tijolo e cal hidráulica
e janelas abrindo para o vale
Com o teu útero
Com a memória do pão depois de levedado e da tua saia comprida
cheia de farinha
Com a memória de uma gema de ovo
Com o teu útero
Com a memória de uns sapatos demasiado apertados
Com a memória do giz e do ferro a carvão e dos alinhavos
na minha alma antes de ser posta à prova
Com o teu útero
Com a memória de uma véspera de Natal das rabanadas e da aletria
e das águas que de súbito inundaram o soalho da cozinha
Com a memória agitada dessas águas
Com o teu útero
Com a memória de uma explosão de mimosas
Com a memória do cheiro a flor de laranjeira e a néroli
Com o teu útero
Que o anatomo-patologista dentro em pouco se encarregaria de
retalhar
com a lâmina do bisturi

Jorge Sousa Braga


Não sei sobre pássaros,
não conheço a história do fogo.
Mas creio que minha solidão deveria ter asas.

Alejandra Pizarnik