domingo, 31 de dezembro de 2017

No hábito de te encontrar preso nas palavras
tento fixar-te em folhas de papel
aí não invento sorrisos
fixo palavras nas linhas,
onde pouco a pouco,
a noite cai
Atravesso-a numa caligrafia manchada pela inocência
escrevo letras redondas, onde és uma sombra
na cor que escolho para as sílabas
e quando as palavras se gastam
ossificam-se em lágrimas secas
Em busca de palavras perdidas
na humidade dos olhos
confundem-se metáforas barrocas
onde o teu nome amanhece abafado
O contorno das sílabas sabe a pele em horas de imitação
onde os dias se devoram em letras invertidas
e palavras nuas, da cor da tinta, respiram sonolentas
São paisagens de vozes escritas
alimentam-se da luz entre a tinta e os dedos
Afinal o perfil do silêncio é apenas uma longa palavra por escrever

Maria Lolita Sousa


#dizem_que_não_têm_sono_e_querem_jr_ver_o_fogo_de_artifício
#2017_22h)
Que quer ainda esse pássaro
tão atento ao silêncio
fulvo da cintura?
Os olhos -
quem foi que fez a casa
em tão frágil azul?
São assim os meus dias,
ardem lábio a lábio
com o vento nos álamos.

(Eugénio de Andrade)
ANÚNCIO PUBLICITÁRIO
Procura-se companheira/o
para relacionamento poético sério.
Apenas se exige que saiba dizer
que o surrealismo é coisa para
ter morrido no século XX.

David Teles Pereira.

Quando chegaste anunciavas-te como o melhor ano do ano, e é verdade que vinhas rotulado como o melhor de todos, com prémios de fotogenia e de simpatia nos concursos de San Remo e de Vancouver, de que alguns - poucos - prontamente desconfiaram.

Às primeiras andanças da elíptica já todos sentíamos que o odor do teu perfume era afinal Old Spice e que lias Chagas Freitas às escondidas na casa-de-banho. Daí, até descobrirmos que eras batidinho nas caixas de comentários do Correio da Manhã, foi um tirinho.

Não precisavas disso, 2017! Não precisavas de andar a espalhar a tua vida social de copos com os artistas, nem essa presunção de que irias trazer contigo a Madonna. Estamos um bocado cansados desse pedantismo pá!

Só queríamos um ano justo, tipo XS, um ano justíssimo para os que precisam e para aqueles que se esforçam. Um ano que não se preocupasse em limpar o suor do rosto, que olhasse nos olhos, rua-a-rua, café-a-café, feira-a-feira, riso-a-riso, mão-a-mão. Um ano de consolação. Não precisavas ser histórico ou da sorte, bastava-nos que fosses sincero e honesto.

Ano que é ano deixa as recordações simples de um abraço, de uma mão que ajuda, de um contemplar das Perséiades a rasgar o céu estrelado num acampamento. Tivesses sabido perdoar mais vezes e estaríamos um pouco mais contentes.

Um ano dos verdadeiros acaricia as rugas dos mais velhos enquanto protege as crianças, e deixa sempre um bocadinho de céu para nos aconchegarmos. Os verdadeiros chegam ao fim cansados, de roupa suja e desbotada. Esses sim, são os anos!
Quando são assim somos mais gratos, mais nós. Melhores.

Podes partir agora, 2017!

Precisamos de um ano que exista para além dos areópagos, dos templos, das cortes e dos avanços tecnológicos. Um ano mundial que chegue antes do tempo e que traga com ele um abraço um pouco mais demorado porque mais sentido, que segure na mão e que fique para escutar.

Vem depressa, 2018!
Dele já se diz à boca fechada que é filho bastardo do sonho.

Paulo Marques

Feliz Ano Novo!

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

é entre o rasgar das palavras e o que fica na memória.





quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

I will remember the kisses
our lips raw with love
and how you gave me
everything you had
and how I
offered you what was left of
me,
and I will remember your small room
the feel of you
the light in the window
your records
your books
our morning coffee
our noons our nights
our bodies spilled together
sleeping
the tiny flowing currents
immediate and forever
your leg my leg
your arm my arm
your smile and the warmth
of you
who made me laugh
again.

Charles Bukowski
sei que falar de ausência é chamar-te para o poema

para que sejas apenas uma silhueta recortada ao acaso na parede
prefiro uma descrição onde tudo é paisagem

e incluo árvores para assim te transformar
numa mancha que as folhas escondem
como um vazio preenchido pela sombra.

Maria Lolita Sousa
desenhei com o meu corpo a perfeição do teu




segunda-feira, 25 de dezembro de 2017


Preciso de ti para um poema de amor


Natal é...estar disfarçada no presépio, a ver se os humanos se distraem com a mesa cheia de comida. *Mega*

domingo, 24 de dezembro de 2017

Ode ao Gato

Tu e eu temos de permeio
a rebeldia que desassossega,
a matéria compulsiva dos sentidos.
Que ninguém nos dome,
que ninguém tente
reduzir-nos ao silêncio branco da cinza,
pois nós temos fôlegos largos
de vento e de névoa
para de novo nos erguermos
e, sobre o desconsolo dos escombros,
formarmos o salto
que leva à glória ou à morte,
conforme a harmonia dos astros
e a regra elementar do destino.

José Jorge Letria, in "Animália Odes aos Bichos"




Medicar o gato (versão rir é o melhor remédio)


1. Agarre o gato e coloque-o em seu braço esquerdo como se estivesse segurando um bebé. Posicione o dedo indicador e o polegar da mão esquerda em cada canto da boca do gato. Pressione levemente para que ele abra a boca. Tão logo isto aconteça, coloque o comprimido em sua boca. Permita que o gato feche a boca e engula a pílula.

2. Pegue a pílula do chão e o gato detrás do sofá. Encaixe-o no seu braço esquerdo e repita o processo.

3. Apanhe o gato no quarto e deite fora o comprimido encharcado.

4. Arranje um comprimido novo, coloque o gato em seu braço esquerdo e segure as patas traseiras com a sua mão esquerda. Force-o a abrir a boca e empurre o comprimido até a garganta com o indicador. Feche a sua boca imediatamente e conte até 10 antes do soltar.

5. Apanhe o comprimido de dentro do aquário e o gato de cima do guarda-roupa. Peça ajuda a um amigo.

6. Ajoelhe-se no chão com o gato preso firmemente entre os joelhos, segurando suas quatro patas. Ignore os grunhidos emitidos pelo gato. Peça ao amigo que segure com força a cabeça dele enquanto abre a boca. Coloque uma espátula de madeira na boca dele. Deixe o comprimido escorregar pela espátula e esfregue a garganta vigorosamente.

7. Apanhe o gato que está pendurado no cortinado e vá buscar outro comprimido. Lembre-se de comprar uma nova espátula e remendar o cortinado. Cuidadosamente enrole o gato numa toalha de modo que apenas sua cabeça fique de fora. Peça para o amigo o manter assim. Dissolva o comprimido em um pouco de água, abra a boca do gato com o auxílio de um lápis e despeje o líquido em sua boca.

8. Veja no remédio se este é nocivo para seres humanos. Beba um pouco de água para se acalmar. Faça um curativo no braço do amigo e limpe o sangue do tapete com água morna e sabão.

9. Vá buscar o gato à rua. Arranje um novo comprimido. Ponha o gato dentro do armário da cozinha e feche a porta, mantendo a cabeça do gato para o lado de fora. Abra a boca com o auxílio de uma colher de sobremesa. Atire o comprimido para dentro da boca.

10. Vá até à garagem e traga uma chave de fenda para colocar a porta do armário no lugar. Coloque uma compressa fria nos arranhões do seu rosto e confira quando tomou pela última vez a vacina contra o tétano. Deite fora a sua camisa rasgada e vá buscar outra ao seu quarto.

11. Chame o corpo de bombeiros para tirar o gato do cimo da árvore do outro lado da rua. Peça desculpas ao vizinho que se magoou ao desviar-se do gato. Tire o último comprimido do frasco.

12. Amarre as patas dianteiras nas traseiras com uma corda e prenda o gato no pé da mesa de jantar. Coloque luvas de jardinagem. Abra a boca do gato com uma pequena chave-inglesa. Coloque o comprimido seguido de um bocado de patê. Segure a cabeça dele na vertical e derrame meio copo de água para o ajudar a engolir o comprimido.

13. Peça ao seu amigo para o levar ao pronto-socorro mais próximo. Sente-se tranquilamente enquanto o médico sutura seus dedos e braços. Pare na primeira loja de móveis no caminho de casa e encomende uma nova mesa de jantar.

14. Procure um veterinário que faça atendimento a domicílio.



sábado, 23 de dezembro de 2017

#divã_veterinário_depressão
ou
da série " história da vida dum cão *cuecofago* " (eram 3 cuecões de homem)


olhar é um modo de crescer em silêncio

Herberto Helder


sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

rats have feelings too



era uma vez...
estas mãos que te amam sem corpo,
era uma vez um rebuscar de raízes
o mar com o azul da espuma a vestir-me a pele

era uma vez as mãos,
as tuas
a percorrer-me vales e rios
à procura dos momentos em que o meu corpo de terra
queira fazer amor contigo

era uma vez o fogo
um rio
uma brisa
uma pétala
uma semente

quando o princípio era o principio
e o *era uma vez*
tornou-se
em dez, em 1000

até ti
até sempre
há uma história para ser contada,

len
ta
men
t
e

começa quando o corpo cai sobre uma pedra lisa, e se eriça de urgência, os olhos mergulhados num tempo feito de mãos

en
tre
la
ça
d
as

e de luas altas.

continua onde existem os teus lábios, que se contornam dos vazios das vozes, o ondular que nos enche de rio, e a pele que reveste a nossa imaginação de desejo através dos dedos. o

e
co
ar

da respiração na noite escura

{lembrar-nos que existiu muito mais do que apenas um passar do tempo}

são a quebras, as quebras em que somos síncronos.




tenho para mim que o tempo é um lugar exacto e estranho
que me encolhe os dias e rouba o teu olhar

este lugar vazio que o tempo não preenche

o que sei de mim
o que sei de mim no tempo?
quis regressar-te no peito, quando as paredes se transformaram em poemas, e o amor sabia ao contorno do teu rosto na minha almofada / às pernas entrelaçadas debaixo dos lençóis / à casa construída de palavras dependuradas nos lábios entreabertos.
três ou quatro passos por dentro do tempo. a manhã a ser um lugar a habitar. a saudade engarrafada - bebida, gole a gole - a transbordar. um país habitado da frágil melancolia desenhada em sorrisos.
são estes os dias em que as marés são como o apressar duma enchente.

[em que o coração dissonante _completamente disléxico _ me salta pela boca]

em que fico a observar os ventos que me nascem dos dedos, que lutam para não perder a memória do toque da tua pele.

[tudo sem respirar]

depois passo as mãos pelo cabelo, com os dedos ainda manchados pela ausência.

é quando suspiro fundo e faço novamente pergunta:
então e o amor?
há horas a trespassar a vida, em tardes que adormecem em marés vazias. há pessoas que, sem nunca as ter conhecido, habitam a minha cabeça. são tempos da horas a gritar na pele, de mãos que se oferecem e nos prendem todos os poemas e palavras. são horas em que o amanhã amanhece na tua boca, em que o coração e a boca se inclinam para o desejo, em que a tua cabeça é sal ajustado no meu colo.

[tão somente um percurso de palavras interrompidas, ditas na espera ao respirar o dia]

é o décimo quarto dia de um novo começo - um recomeço. dois tons acima da pele

caio como quem voa, mergulhada no equilíbrio do corpo que deixa de ser meu ou nosso. amamos como quem repousa da avidez da vida, às vezes de nós.
tatuamos as mãos de vento em noites de lua e entrega. onde o tempo podia ter parado. onde eu podia ter ficado.

o sangue  _  que pulsa,
a água _ que nasce,
os rios _ que correm.

ao não saber nomear o doce e o amargo
saem palavras dos olhos em forma de água...

amamos em voo,
tão menos tudo que a vida.

asas inteiras,

corpo,

e
(m)
queda.

e no entanto:
de mão dada, vou.
alguma coisa tem que ser verdade - o amor que se sente, o significado do que é importante. os desejos que se mantêm aprisionados aos sonhos. a contabilização dos gestos. o compromisso entre o tudo e o nada.

[estar suspensa no ar, nesta tarde de azul povoada de calor]

voo por cima do rio, por cima da cidade onde descansam os que amo. por cima da vida que deixei suspensa, entre o infinito e o vazio, entre a saudade e a eternidade.

despenho-me sem saber o que dizer, no abraço que não me deste - deixar sair o que já não tem espaço dentro de mim [choro]

é a despedida? é a vida despovoada de palavras que perderam o peso? é perdermos-nos no ciclo dos sentidos? é o (sis)simular o significado dos silêncios, dos teus olhos de sempre, do cheiro de cada partícula se ti?

[o abraço que me faz acreditar em cada dia que passa]

medir-me
pela grandeza
da indecisão
simplesmente fechar os olhos e aguardar. que não se viaje nos sentidos contrários, que não se veja além do momento imediato

despenho-me no turbilhão do medo, as lágrimas pelas quais deslizo de encontro a vida.

sem ti não sei que raízes lançar, porque roubaste parte de mim e fiquei presa pelo fio que me liga à consciência - saudade

[é o mar, é a lágrima?]

sei que amar-te é quando as horas do dia se colam ao sono
poderia dizer-te do que me corres nas veias, das ilhas escondidas nas águas que eu amo. poderia dizer-te das tempestades nos grandes mares internos, das mãos e dos lábios que percorrem o seu destino.

e dizer-te “vem” como quem diz “beija-me”.
o corpo e a forma do poema. intenso como só o desejo recortado na minha pele.

{este amor em forma liquida, na travessia do tempo onde se geram os ritmos}

os teus gestos, no meu corpo entrelaçados, a minha língua que se escreve na tua pele.

{este avesso das palavras, na escuta das tuas mãos que desenham o côncavo do meu corpo}

perco os olhos nos movimentos de ida e volta, enquanto murmuro nos poros da tua pele, com o entardecer dos meus lábios

{ _ as mãos desassossegadas, butterflies a sussurrarem-me o ventre_}

a linha da anca onde mergulha o quente dos teus dedos.
é este amor táctil, em que me lembro de ti em mim, onde se libertam as imagens nos dedos

{memórias em forma repeat que me encerram as mãos}

abracei-te no meu colo

{as tuas mãos mergulhadas nas minhas]}

onde me sinto pequenina, na sombra dos meus cabelos. a fazer planos, desencontrados. na intensidade do momento.
escreve-se um tempo que parou para em seguida voar
escreve-se o redescobrir das origens, no horizonte a espraiar-se
até aos confins da consciência.

[o tempo que me rouba os dias, sem o teu olhar]

sinto que vamos ficar aqui, sonhos a fio, como se uma parte de nós tivesse ido . no agitar as emoções, a saudade que no nome dum lugar, me devora em feridas que só o sono acalma.

[ir para voltar, o todo das dores que desfiamos]

o que interessa são os beijos entre beijos, e todas as palavras incontidas da saudade. levas-me, com o coração à frente dos próprios passos, o rendilhado das margens do poema

deve ser assim que principia o transparente dos dias, por entre os murmúrios e as minhas mãos que adormeceram nas tuas.


foi naquele preciso momento em que ela não estava à espera, que lhe deu uma coisa, assim - a vida a entrar de mansinho, a colorir um eco, a apetecer-lhe cortar o céu num voo de paixão.
foi sem mais nem menos, sem um pré-aviso até, a pele arrepiada no corpo a arder no desalinho das palavras, a humedecer as linhas das mãos. sem iludir o desejo. as certezas sacudidas em ventos agitados. o tempo da chegada sem ter que ter respostas.
apaixonou-se. apaixonou-se à séria, de paixão à cova, de coração descompassado - tum-tum, tum-tum - apaixonou-se pela pele que lhe dá guarida. com a vertigem do que se adia, de olhos desmesurados de assombro.
apaixonou-se assim, sem mais nem menos, o sorriso rasgado de espanto, os versos salientes no parapeito onde escrevia a outra palavra, como quem diz: amor

ela perdidamente apaixonada, a preponderância sem o medo de ser. a sentir correr à flor da pela as esperas dum tempo que não lhe pertence.

apaixonou-se e o mundo é todo o medo dum caminho solitário, que não nos avisa quando nem quem.
reza a história de que ela não (as) deixava - as palavras - as mãos que não agarram quaisquer verbos, a ausência das que nos habitam de corpo inteiro os dias prematuros.
foi uma para cada lado, a ensurdecer o amor que se manipula por de fora da pele. fugiram, a ecoar no avesso como um seio ausente, quando se encostam na expressão dos dias.
pensa como seria o seu corpo, quando a distância não precisa de mais nada senão de existir para crescer.
quando o coração acorda, e a memória também. quando o corpo é a linguagem silenciosa dos verbos conjugados no presente. acreditar que o dia não começa nem acaba, sem te trazer dentro de mim.

[os dedos entorpecidos, que não parecem feitos à medida das palavras que brotam instantes na tua voz / a adivinhar ecos / a tactear sinais.]

o tropeçar em beijos, demasiados, desmesurados. assim parados. abraçados - o coração tresloucado quando me cravas as mãos e fico ancorada em ti, a parir ilhas dos dois, minutos antes de a maré encher.
procuro-me no tempo que soletra palavras nos caminhos mais curtos para o destino. apetecia-me entrar no teu sorriso e deixar-me engolir pelo teu abraço. era isso. tirar a roupa e ficar despida de mim nos teus braços
poderia dizer-te que quando chegas com a lua no peito, por dentro do coração rebenta uma anarquia rítmica. o sangue sacode-se em vocábulos e preenche-se no indizível do vazio com gestos de ternura.
poderia dizer-te que as mãos seguem pela água e pelos dias, percorrem o destino dos silêncios sem pressa na espera, sem horário de volta.
acendes o olhar e eu procuro-te a vontade lenta dos beijos ao longo da pele, do molhado das palavras quando me dizes que me amas.
és a brisa, o mar e o céu onde nascem poemas, quando me sopras do meu lado esquerdo.

e eu sou este destino, com a boca a saber a noite.
hoje é sexta-feira. hoje

[por enquanto]

permanecem os estilhaços sob a epiderme.
a cada sexta-feira o medo rima com a ausência e há uma fraqueza a querer ser poema. trago no peito um coração que sangra nos vazios por preencher.
respiro solidão e responde-me o silêncio, quando a aflição se faz amante da desordem do amor.
hoje é sexta-feira e respiras-me o meu nome. tudo está igual, permanece o toque na pele e o teu cheiro, o teu olhar a transpor-me todos os silêncios

é o pesadelo a desarrumar-se em conforto
é o coração a bambolear-se em saudade
é o pânico feito noite na esperança duma vida em retalhos
é o vento tricotado em amanheceres contínuos
é o corpo dentro do sonho por hoje ser sexta-feira

é o tudo e é o nada.
e percorro o meu destino quando que dizes que me amas
nas madrugadas. onde me rondam os versos de paisagens dedilhadas do chão que me faltava e que o coração invoca.

[ pressente-se o primeiro dia em todas as manhãs. a escrever coragem, a nomear emoções.]

depois, é o silêncio dos olhos que param no sono.
depois vou respirando, entre um dia e o outro, como quem inicia o voo à entrada de um sonho.
era uma vez um calor que se transbordou
um rio a correr dentro da minha casa,
o arrepio no corpo e na vida
súbito
o gesto, o grito
as ondulações que escorrem
em que te creio semente

era uma vez
quando te queria dizer desta certeza

e depois mil
de uma vez
há que manter o equilíbrio no tempo que percorremos, cheio de declives
onde a dor fica como marca de silêncio na respiração

[ fazer da memória e da ternura - imensas - porto de abrigo ]

preciso disto. de mãos que amarfanham o caos do meu lado esquerdo. do corpo dum poema a preto e branco.

[desfazem-se os beijos
em monossílabos inclinados de asas rasgadas]

é aí que morrem os dias.
em sonhos de voos rasantes
nas margens costuradas em pontos apertados
- os abraços -

e eu
só quero
ficar
perto
há um lugar em mim e um tempo onde a polpa dos meus dedos adquire a súbita tonalidade de silêncios. o tempo que fica entre o querer e o estender das mãos. o lugar em que se deixam cair em sonetos desconexos - as mãos, sem saber onde se esconder do prazer, nestes dias a parecer uma enorme sala no debruçar das horas.
de novo, para não ensaiar palavras, há o lugar dos meus dedos em ti - o tempo em que te digo que as mãos se merecem e os lábios se pertencem

[como os olhares],

o tempo por detrás das palavras e que se torna insuportável, os dias a adormecer em maré vazia.
e cada vez que digo: há um poema nas palavras que não se importaram em pensar-te aquando te espero. que escrevem o teu nome. há um poema nos labirintos traçados, devagar, sobre a pele. no desmembrar dos silêncio. nos olhos como margens do mar em que nos afogamos.

[são palavras que sopras entre as pálpebras?]

ainda há pouco dizia: a boca que deixas cair tão cheia de vento. que se despenha no meu peito. a boca onde me deposito, abandonada, como um pássaro de fogo.

[os dedos alinhados, o ar da tua boca quando te respirava]

queria ter dito: entre nós o tempo desenha-se assim, devagar. sem o nome da pressa. inverte-se o gesto do peito rasgado pela vida. paramos de falar, o ar a faltar... é o mar onde cabem todos os caminhos dos sonhos.
morro-me no grito quando as tuas mãos queimam o sangue, quando se passeiam em mim dessa maneira. sinto-o nas veias, o precipício do corpo urgente - pela carne e pelo peso.

[demora as mãos um pouco mais]

e é sempre a primeira vez que os gestos acontecem, a sul dos olhos que se descobrem.
sabes,
estremeces-me as palavras quando ritualizo no silêncio da boca, o alfabeto de quem mora do outro lado do amor; do amor

[timidamente]

entrelaçado por dentro das veias.,

tenho
tanto para o que não sabemos dizer, do que se escreve em cinza e no silêncio dum mar adentro da memória, em palavras que esvoaçam nas realidades frágeis.

amo-te
com o desassossego do que se respira no coração dos pássaros, entre a procura e a surpresa, onde me encontra quem me quer saber.

sabes,
dou-te de nome ao sonho, quando tudo o que eu quero é abrigar toda ternura

[escondida]

nas mãos sonâmbulas de te esperar.
às vezes não sei o que te dizer e fico com as palavras guardadas cá dentro. como se ao dizê-las fosse quebrá-las, roubar-lhes a grandiosidade. como se a minha noite permanecesse muito para além da escuridão, muito para além do dia, muito para além da vida.

às vezes há coisas que não digo, mas que nunca esqueço: a casa que são as tuas mãos e o teu corpo, a tua mão na minha mão, os teus olhos a chamarem-me, o teu sorriso a invadir-me. o teu abraço - sonho sempre com o teu abraço. e não me canso. do teu peito no meu peito a atear-me as cicatrizes. o meu peito a tatuar-se no teu.

perguntas em que é que penso e eu digo que penso em nada. faço do meu corpo um espaço de silêncio, como se o nada abarcasse o pensamento de quem ama. como se fosse maior do que o nada em que o mundo se torna. esta estranha raiz que cresce em direcção à tua ausência - não quero dizer. não quero dizer todas as imagens, ou todos os tons da tua voz que ainda não sei como escrever. não sei escrever as tuas mãos, não posso escrever as tuas mãos. não posso escrever o beijo. não sei escrever o abraço.

conseguirei estancar esta agonia que me faz sofrer constelações?

(tenho a vida intermitente do voo sob a palavra)
sei do tanto que tenho para te dizer, do debruçar no poema, na possibilidade da queda - escorregar pelos cabelos,

len
ta
men
te,

nos dias de veias ardidas.

são os caminhos solitários

[por dentro de mim],

 cada vez que te quero dizer que gostaria de te amar, no ousar dos corpos entrelaçados debaixo dos lençóis.

tenho esta dor que se escreve e me atravessa, nas arestas do tempo

[ a dor que fala, que por vezes grita]

, a fracção de desejo e saliva, a deixar reticências sobre a pele.
as promessas ritualizadas no país habitado pelo amor que se escreve cinza e silêncio.

[o corpo, no avesso das emoções.
o pensamento, na distância de asas abertas]

e o amor que sinto por ti, é a pele a voar mar adentro da memória
o amor, por que esperei, e que será meu para sempre

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

às vezes acordo com um deserto obscuro na pele. digo-te que tens as mãos presas numa linguagem que nem eu entendo. sacode-se o silêncio que abriga o teu rosto, a nudez que é a alvorada - em cada sussurro, em cada voo.

prendo a respiração

 [o sangue a correr às golfadas, a pele cerzida na medida exacta de existir um corpo dentro do sonho].

 o chão duma memória por dentro dos cheiros, da pele, das mãos, da língua, dos lábios, dos dentes - fronteiras que se invadem quando as mãos se tocam.

respiro. dizes que não devias ter-me olhado nos olhos, que há uma loucura plena de poemas corpóreos e saliva - e que há uma canção que se renova na margem da pele em cada noite.



" Foi você que me ensinou a ternura da vida. (...)
A verdade é que a vida sem ternura não é lá grande coisa."

(o meu pé de laranja lima)


quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

estás aqui. na memória da minha pele, na memória das minhas mãos.

depois de ti, há histórias que continuo a querer contar. como daquela vez em que fiz do teu corpo jangada. e hoje escreveria a nossa ternura exactamente com as mesmas letras

nutrir-me-te-nos das tuas raízes, sentir o cheiro do verde, e deixar-nos perder no silêncio dos dias.


terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Quero dar-vos de beber. Um copo de vinho, generoso, dócil. Não tenhais receio se a avidez tomar conta das vossas gargantas. Dir-vos-ei palavras-cacho, servas da vossa sede, como na vinha do Senhor. Façamos um brinde. À anunciação do filho, que o meu ventre tratará de gerar, como uma paisagem à janela da carruagem que floresce olhos dentro. Gosto muito de andar de comboio. Cabem-lhe tantas histórias, daquelas que se amparam no colo, como a um recém-nascido. Tantos órfãos ali jogados nos assentos, um choro inaudível corre-lhes à pele. Deixai-me abraçar-vos, na impossibilidade de acorrer a todos os enjeitados. Um novo copo, a reverberação do cristal, o brasume dos corpos como toros à lareira. As velas deste lar ardem para lá do fim, acende-as um sopro das bocas que se dão na eternidade.

Ouvis o berreiro? É o choro do meu filho acabado de nascer. Gerou-o o cheiro da terra humedecida pelo orvalho nocturno. Como é intenso e alegre e reconfortante. Bebamos.

Sou um homem-vide. Podo-me e enxerto-me e logo novos rebentos brotam. Estou-vos grato pela chuva e pelo sol que me trazeis nas faces das mãos. Amei uma mulher logo a partir das mãos. As linhas traziam-me a seiva de todas as viagens a que é necessário fundarmo-nos. Ainda a amo, porquanto nunca se parte desse lugar onde o ser se consubstancia. É uma profecia que a alma faz cumprir ao longo de várias vidas.

 Estão vazios os vossos copos. Deixai que se inclinem para a nascente, como o cálice para a vida eterna, como a boca do recém-nascido para o túmido mamilo do seio materno. 

Pelas gavetas há fotografias em que vestia as roupas de ver a Deus. Contudo, vi-o em mim quando apenas um lençol cobria a ressurreição do meu corpo. Vede as minhas cicatrizes. Não tenhais medo, só mordem por dentro. Continuam tão vivas como quando eram um golpe aberto. Como os veios que ainda sangram na terra em que as nascentes secaram.

Tenho de aprender uma canção de embalar. Nasceu o meu filho e não sei nenhuma. Não recordo alguma que me tenha sido sussurrada ao ouvido. Ah, uma canção de ninar. Houve uma criança que para adormecer o irmão tinha de lhe acariciar as pálpebras, como se estivesse a polir uma relíquia, invocando o senhor do sono. Como são preciosos os gestos da intimidade. Se nos desleixamos, ficam na eminência de cair, como a jarra na beira da mesa. Um pequeno tremor e estilhaçam-se em minúsculos cristais no chão, como lágrimas rebrilhando de dor.

Na verdade não sei o que tenho estado para aqui a dizer-vos. Sim, celebro a arte da amizade com o vinho. É cada vez mais um acto de coragem, o de nos embebedarmos dos amigos à mesa. Uma narrativa grávida de lentidão, como o gesto de esperar o fotográfico. A garrafa e os copos vazios, marcados de nós, lábios e dedos, serão a prova de que existimos para lá do instante.

Festas Felizes para todos

Hélder Magalhães


atropelamento

Quando eles dizem
"morreu rebentada por dentro"
querem dizer
que o coração se moveu do esquerdo
ao lado direito do peito
que o impacto se sentiu no pulmão
onde o coração entrou e ficou escondido
palpável à língua
Que o fígado acidulado por um último jantar
se lançou em espuma contra as costas
e negra da noite ao avesso
a caixa torácica perdeu o abaule
o orgulho
as flores como pétalas de osso quebraram
por todo o dentro de cinco sentidos
Em todo o caso o corpo
ficou incólume
sentado na estrada
desviado apenas do lugar
onde esteve o baque da alma

Andreia C. Faria, in Flúor


segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Disseste-me: ainda estás a tempo de fugir. sorri e, abrindo as mãos, ofereci-me a ti. amar-te é perder-me, disse-te, é encontrar-me no teu abraço, é desistir dos silêncios que me têm povoado os monossílabos que não dizem mar.

Disseste-me: se respirares o meu nome, transponho todos esses silêncios. olhei-te, e a três passos de ti disse-te, com os olhos no vento, que o teu sorriso desagua nas minhas mãos neste amanhecer contínuo.

Disseste-me: não sei onde irei guardar os meus segredos, mas preciso da tua pele para escrever um poema de amor.




microscopia de um floco de neve

domingo, 17 de dezembro de 2017

a solidão e o silêncio - palavras que não te ancoram à realidade. a escreverem naufrágio nas decisões conjugadas. quando ainda há futuro em cada gesto, quando o coração sem verdade se encosta na expressão da noite - há as marés que nascem do teu olhar, das tuas mãos

{ que sabem a abraços }

e aquietam a pele.
sou daí, desse lugar estranho que é o amor, não mais e apenas um pressentimento do nosso desassossego

{da nossa cumplicidade que é uma mão que se enviesa no limite das palavras}

entre a saliva e o sangue há, de certeza, muitas viagens sofridas no interior da antecipação, de ter os afectos
o logro da inocência. o meu corpo e as palavras que dançam por entre silêncios e a solidão, e escrevem um sono que ambiciona o fim

{ somar à vida o sabor do futuro apalavrado }

e um dia, descobre-se algo dentro de nós, a verdade distorcida de quem somos - e dói - enquanto se suspende a respiração como se a vida já não nos pertencesse, como se o atalho mais curto para o destino se quebre, por fim, na possibilidade do regresso.
o coração, que se detém no que não acontece, quando te trago tão longe daqui.
o pulso, onde os dias se estrangulam em regressos.
as linhas das mãos, onde se escrevem as coisas por nomear.

{ se eu não tivesse essa mania irritante de que tudo pode ser mais simples, e de que o recomeço é o ensaio de coisas por nomear}






Pyramid Of Animals, by Katarzyna Kozyra





sábado, 16 de dezembro de 2017

escrever na minha pele, na vontade de gritar, as lágrimas que não devem ser faladas. trespassadas pelo sopro da memória. escrever as palavras presaps na minha nudez, ali para os lados da solidão

[tudo o que nos enrola o coração no corpo e se guarda em silêncio e no silêncio]

permanecemos assim, uns nos outros e no medo. o medo mascarado de pele onde escrevemos os nossos silêncios.






estou aqui a ser a tua ausência. pesas-me nos lábios como se nascesses de novo de uma metáfora antiga. as mãos abertas [as tuas, as minhas], para conseguir-te mais dentro do vento a atravessar a pele. 
é a água que sai do corpo e é um rio, é o teu nome, a memória e as horas no desapertar do abraço. 
dispo-me de ti numa língua que o meu corpo entende. apago a memória do agora, com as palavras a rasgar até ao osso. 
és o indicativo do verso que declino por dentro da pele, em fome e sede, no poema que nasce no céu da boca. do peito que fica cheio [é difícil o respirar] quando cravo os dedos [gastos], na escrita que irrompe voraz no teu corpo. 

escrevo a língua dos vocábulos, a sílaba do amor quando o verso cresce nas paredes do poema. para conseguir-te mais dentro - do poema.


sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

e tocar-te assim com vidro de permeio
beijar-te os cristais de açúcar que trazes presos nos olhos
pousa quando quiseres no meu para
peito
estarei sempre pronta para a fotografia


Sónia Oliveira


quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

é amargo o coração do poema que se escreve de desejo
ao cair da noite
tal como amargo é o sangue que nunca para de correr
nas mãos que desenharam caminhos nas veias
a minha mão esquerda, que em cima solta as estrelas 
por de dentro dos teus cabelos.
e, em baixo, a outra
a que se enlaçada na tua
(onde começa uma e acaba a outra?)

sinto a tua pele a fertilizar a escuridão 
feita de amargo. Amargo, amargo, o sangue,
do saber-te por perto a escrever-me o mundo todo.

(a respiração? como sempre, síncrona)

apenas 
flutuo










O Outono come a sua folha da minha mão: nós somos amigos.
Nós descascamos o tempo às nozes e ensina-mo-lo a andar:
o tempo retorna à casca.
No espelho é domingo,
no sonho dorme-se,
a boca fala a verdade.
O meu olhar desce até ao sexo da amada:
nós olha-mo -nos,
dizemos coisas obscuras,
ama-mo-nos como papoila e memória,
dormimos como o vinho nas conchas,
como o mar no clarão sangrento da lua.
Estamos abraçados à janela; eles olham-nos da estrada:
é tempo de saber!
Tempo para que a pedra resolva florescer,
para que um coração bata inquieto,
É tempo de ser tempo.
É tempo.

Paul Celan


"Érase una vez
un lobito bueno
al que maltrataban
todos los corderos.

...Y había también
un príncipe malo
una bruja hermosa
y un pirata honrado.

Todas estas cosas
había una vez
cuando yo soñaba
un mundo al revés.”

“Érase una vez” de José Agustín Goytisolo




come to my heart and pay no rent


quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

digo - o amor. digo - a pele por que me apaixono, a turbulência do corpo que respiro.
digo - palavras, o poema em que me desnudo. o encantamento dos gestos em que me perco.
é deixar em ti muito mais do que aquilo que permito perceber.



“Eu gostaria de poder escrever algo tão misterioso como um gato.”

Edgar Alan Poe



terça-feira, 12 de dezembro de 2017



havia esse espaco, e a distância - o amor entranhado na mais pequena porção do respirar da pele.
o meu corpo que era um país habitado, antes do tempo, depois das horas.
e eu ali, a faltar-me saber como cartografar todas as fronteiras do abandono, 

[o lado estreito da minha sombra].

o toque dos teus dedos nas minhas palavras, que percorrem lentamente  as margens de rios, por entre as linhas das minhas mãos.

.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

amanheces-me nos lábios e na pele, onde se lembram palavras despidas de corpo. 
são memórias, transpiradas, que dentro de mim se afogam em certezas. 
quebram-de nas ondas do meu mar. onde se escreve como te tenho no colo, de todas as vozes que desaguam no meu silêncio.




#memórias_duma_Vet_toda_queimadinha


a minha vida é tão emocionante... 😑


habitas-me em cada palavra que dança entre os silêncios 
[poemas corpóreos cheios de certezas não verbalizadas]
manhãs que crescem nos teus braços, nas tuas mãos, na pele onde pousam os pássaros que nos permitem sonhar. a pele pela qual me apaixono, cada vez que respiro a tua ausência.
habitas-me nestas palavras que são só nossas. a cerzir as linhas onde desenho a tua espera.
o voo dos encontros tão breves - a ternura consentida na persistência da memória.
porque há muitos poucos corpos que nos ensinam a voar.

domingo, 10 de dezembro de 2017

O que afinal me lê são todas as palavras que por dentro me perfazem, enquanto me lembro que ninguém me ensinou que o mundo podia ter o tamanho da tua ternura.


quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

(...) Amanhã, ou enquanto dormes
- agora mesmo -, vou pensar em ti.
Intensamente: até que as horas me doam sobre a pele,
e o movimento dos dias passe como aves
que perdem o sentido do voo - até que tudo
o que me rodeia tome a forma do teu corpo.
E em mim circules - quando estendo a mão
por dentro da noite e te acordo,
no fogo dos meus olhos.

Al Berto

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

a ação consiste em escrever[-te], de.va.ga.ri.nho e num poema. numa linguagem sem regras. sem pausas, sem silêncios. a desenhar palavras com pontuações e letra pequena. 
os meus olhos, a medir o mundo; cheio de arritmias gramaticais frente à tua voz. 
e o coração, que encolhe por de dentro das paredes do peito, e as palavras que ficam com cheiro de pele e de tudo o que se suspende na tua boca.



como saber se sofre de bromidrose (aqui há gato)

Ossometria by Marina Moshkovich
está preparada para ser veterinária

Do livro "Dois corpos tombando na água"
dicionário bilingue em dez chamamentos
volume primeiro: da profanação

1. a de adorar

é na profanação do corpo que as tuas mãos mais se assemelham a uma fé por inventar. seres capaz do altíssimo gesto que coloca dois seios num altar e que faz de um homem um homem apenas. ir crescendo-te o mistério dessa senhora linda e nua e tua sob as mãos, sob a boca: a linguagem e os dentes - a memória da mais antiga mordedura. eis como tudo é bom. muito bom.

2. b de balsamita

aliviar-te da água que do corpo nasce. devolvê-la à origem. não beijar em vão o aroma apimentado do teu corpo. não desperdiçar uma única gota do teu desejo. pronunciar cada gosto de ti como uma sentença de vida. és o meu senhor do alimento e calarei na minha boca todas as palavras sem cheiro de ti: o pão de cada dia refaz-se nesta língua. minha. tua. papa primordial.

3. c de colostro

humedeceres-te de todas as verdades: o meu sexo, ou melhor a minha rata ou melhor a minha cona traz no cheiro o teu gosto: ao princípio metes os teus dedos aí nas circunvoluções anteriores do meu desejo. é já dia e é então que nascem todos os significados: deixas que a palavra cona, a palavra rata e a prosaica palavra sexo escorram entre a minha e a tua língua. líquida, a palavra de leite, líquida, a palavra cona e não saberás ainda por completo as minhas coxas: a tua boca recria em mim multiplicados corpos. povoaremos assim o mundo com os filhos desse gosto: olhos, mãos, línguas que atravessam os séculos nascem do abismo entre as minhas coxas: é sábado. por fim nos santificamos.

4. d de desentranhados

orfãos de mãe, orfãos de pai: a memória do nome dá-se-nos em tecituras que entrelaçam o teu no meu tempo: as auréolas dos meus seios coroam-te os dias e tu desenhas-me em cada uma das linhas das tuas mãos. o nosso é um corpo sudário: incorruptível mãe, incorruptível pai, um do outro nos parimos. a marca amada. a cama marcada.

desentranhada pele da pele. desentranhados, poro a poro.

5. e de estomentar

da inflorescência do teu sexo nascem todos os momentos que em mim se fazem lisuras. o meu ventre recolhe esse lençol alvo e ao morreres, nasces em mim. separarmos o dia da noite para tecermos a longa teia dos corpos.
rotunda a língua em que se dizem os meus e os teus dedos, os nós de nós em borbotões. ai.

6. f de foder

trair-te com todas as palavras profanadas: foder ou comer tudo o que de ti vem, engolir o teu sémen e ao cuspir-te seres outro. olho para ti e cubro-te das jóias mais luzentes em que a minha língua se dá: puta és, puta. ou amante.

por entre as pernas o nome. por entre as pernas, santificado sejas.

7. g de grifar

bichos. bichos. como os bichos nos fodemos. acontece-nos gritar uma só palavra. acontece-nos a nuca os olhos na nuca os dentes na nuca as mãos que arrepelam os cabelos na nuca as unhas cravadas na nuca.
as minhas mãos em sacões pelo teu corpo todo. olho-te. por detrás dos meus olhos estás por detrás dos meus olhos. os sentidos saqueados pela respiração acelerada que me desliza pelas costas.

engatinho e tu vens-te entre as minhas nádegas.

8. h de homem

no interior da minha carne o exterior da tua carne. a pele vai e vem num testemunho de maré. as ondas antes do mar. ante o mar.
aqui, nesta península corpomeu se ergue o promontórioteu. a terra mais próxima já à vista: navegarei teu sangue por dentro e exalarei teu nome: depois, ágrafos, nos despiremos de todas as falsas epopeias. a poesia é pura deriva.

9. I de invenção

sentar-me em ti como à mesa. comer do pão. beber do vinho. a ceia dos sentidos consumida no altar da noite. entras em mim e a digestão começa na boca. suave o vinho, espumoso, escorre-me dos lábios e a palavra pão ganha a humidez brilhante que a incorpora.

invejo o teu sexo que se ergue como luzeiro na noite. invejo-te o líquido que dele mana como vinho e a espada romba que separa o irmão da irmã, a mãe do filho e o meu do teu corpo e vai fendendo o tempo acima, abaixo, dentro, fora, dentro, fora. acima como abaixo. dentro como fora. foder-te também eu.

era o que mais queria.

10. j de jamais

principalmente quando acreditas é que o tempo é de saber. depois não. e o silêncio cai como frio e os corpos dão-se na secreta busca do sentido. tenho uma palavra encravada na goela e a goela inflamada como uma vulva. no mais profundo de mim habita uma fúria em forma de dentes, mãos e sangue. o sexo todo inchado como uma verdade. primeiro acreditamos e depois nos fodemos.

assim seja.

lavo três vezes a boca antes de te gritar. deus dá-se em chamamentos. deus é ágrafo.

deus é nós.

Marta Cunha Caldeira