terça-feira, 3 de abril de 2018

 Boston Cream Pie

http://www.whisk-kid.com/2011/05/chill-boston-cream-pie.html
beyond the human eye (microscopic)
Algumas pessoas vendem o seu sangue. Tu vendes o teu coração.
Era isso ou a alma.
A parte difícil é tirar a maldita coisa para fora.
Uma espécie de torção. Como abrir uma ostra,
a tua espinha, um pulso,
e depois, upa! Está na tua boca.
Viras-te parcialmente do avesso
como uma anémona do mar a cuspir um seixo.
Há um “plop”quebrado, o som
de vísceras de peixe a cair num balde.
E ali está, um enorme coágulo vermelho escuro
do passado ainda-vivo, a cintilar inteiro no prato.
Vai passando de mão em mão. É escorregadio.É deixado cair.
Mas também degustado. Muito grosseiro, diz um. Muito salgado.
Muito amargo, diz outro, fazendo uma cara.
Cada um é um gourmet instantâneo,
e tu ficas a ouvir isto tudo
a um canto, como um empregado de mesa recém-contratado,
a tua mão tímida e habilidosa na ferida escondida
no fundo da camisa e peito,
timidamente, sem coração.

Margaret Atwood
o tempo é a maré que leva e traz
o mar às praias onde eternamente somos
sabemos agora em que medida merecemos a vida*

Ruy Belo

http://www.raspberricupcakes.com/2013/01/assorted-condensed-milk-cookies.html?m=1
O coração respondeu que sim, que permanecia fiel. O corpo requereu a constituição de arguido e a presença de advogado"

(em o anão gigante)

longo é o caminhoe em que disseco o húmus do teu gesto, e se
eternizam as marés do teu olhar.

D&G
Acordo contigo nos olhos
a carícia no interior das pálpebras
é o sol difuso na neblina da última viagem
a ternura do musgo nas grutas
o fluxo gelado das cascatas no côncavo das mãos
confundidas pele e água -
não me vês, não te chamo - não há espaço
Acordas comigo nos lábios.

Teresa Balté

a acção consiste em escrever[-te] de.va.ga.ri.nho
e
num
poema.

numa linguagem sem regras. sem pausas, sem silêncios. a desenhar palavras com pontuações e letra pequena.
os meus olhos, a medir o mundo; cheio de arritmias gramaticais frente à tua voz.
e o coração, que encolhe por de dentro das paredes do peito, e as palavras que ficam com cheiro de pele e de tudo o que se suspende na tua boca.

3/04/2017

.
conta-mo outra vez: é tão bonito
que não me canso nunca de escutá-lo.
repete-me outra vez que o casal
do conto foi feliz até à morte,
que ela não lhe foi infiel, que a ele nem sequer
lhe ocorreu enganá-la. e não te esqueças
de que, apesar do tempo e dos problemas,
continuavam beijando-se cada noite.
conta-mo mil vezes, por favor:
é a história mais bela que conheço.

Amália Bautista


.
atropelamento

Quando eles dizem
"morreu rebentada por dentro"
querem dizer
que o coração se moveu do esquerdo
ao lado direito do peito
que o impacto se sentiu no pulmão
onde o coração entrou e ficou escondido
palpável à língua
Que o fígado acidulado por um último jantar
se lançou em espuma contra as costas
e negra da noite ao avesso
a caixa torácica perdeu o abaule
o orgulho
as flores como pétalas de osso quebraram
por todo o dentro de cinco sentidos
Em todo o caso o corpo
ficou incólume
sentado na estrada
desviado apenas do lugar
onde esteve o baque da alma

Andreia C. Faria

Alexandre O'neill
put on your golden shoes and dance the blues
O menino que carregava água na peneira

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.

Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.

Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.

A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.

Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!

Manoel de Barros