quinta-feira, 24 de maio de 2018

despi devagar o calor de dizer o teu nome
no silêncio do quarto

o aconchego de se ainda voltasses
abre-se em palavras surdas

depois de improviso percorro a solidão
ao espelho

como se, ao olhar muito te visse
preso na pele dos dedos
inacabado e à deriva nos meus olhos


Maria Sousa

. Macrophage (red) engulfing tuberculosis bacteria (yellow)



O meu homem adormeceu há pouco. Está virado para o lado esquerdo, como sempre. É das coisas que mais gosto: vê-lo dormir. Assim como o menino do meu lado da cama, virado para a direita e eu ao centro. Eu sou o epicentro desta casa e tremo muito. Não estava preparada para ser centro de nada e ninguém depender de mim. Não me tinha apercebido de como era ser mãe porque nunca o tinha sido. Achei que tudo estava preparado no meu berço uterino. Que ia ser fácil criar laços e que as responsabilidades surgiam nas contracções de parir. Que a partir daquele instante da expulsão, iria conseguir superar todos os desafios. Afinal, todas as mães são super-mulheres e só isso importa. Sermos capazes de superar todas as expectativas e tornarmo-nos seres invencíveis dentro das nossas quatro paredes.
O pior, é por dentro. Não consigo ser mãe e mulher ao mesmo tempo. Ando desgastada à conta disto e também muito por culpa da cicatriz que ficou dentro, escondida. Algo morreu em mim durante o parto. A dor inerente ao processo deixou-me vincos no desejo. Enrugou-se tanto que de repente penso ter oitenta anos e um corpo a condizer. O espelho dói-me muito, mas segundo me disseram dói a todas as mulheres que parem.
A semana passada, tentou tocar-me no sofá, tal como fazíamos quando o Afonso era um projecto a desenvolver. Afastei-lhe a mão bruscamente e disse-lhe que agora não podia ser. Lembro-me de falar no menino a dormir e da mamada que teria de preparar a seguir. Mamas que dão leite não são para beijar ou aquecer. Sorriu também ele um pouco, talvez nervoso, talvez conformado com a minha pouca vontade dele. Emudeceu, foi para o quarto, jogando copas solitárias até às tantas e eu a jogar espadas contra o meu ventre por não me apetecer. Esperei pacientemente até o clique desaparecer e ser substituído por um leve assobiar respiratório.
Ando há demasiado tempo nisto de sentir que o meu corpo não é merecedor de beijos, mas apenas a sucção de filhos. Que o sinto é um facto e sei que um dia destes o vou ter de assumir. E sei também que o meu homem, que dorme sem questionar as minhas rejeições, irá ouvir o meu corpo com o ouvido encostado ao meu ventre ainda inchado e escutará o eco do meu útero a dizer-lhe: vem, estou à tua espera.

Marta Tavares