terça-feira, 7 de agosto de 2018

Hoje é o teu dia, pai - já cá cantam 88!

Um Segredo

Meu pai tinha sandálias de vento
só agora o sei.
Tinha sandálias de vento
e isto nem sequer é uma maneira de dizer
andava por longe os olhos fugidos a expressão em
                                                 [nenhures
com as miraculosas instantaneidades que nos fazem estar em todos os sítios.

Andava por longe meu pai sonhando errando vadiando
mas toda a sua ausência era
o malogro de o ser
só agora o sei.
Andava por longe ou sentíamo-lo longe
vem dar no mesmo
e no entanto víamo-lo sempre
ali plantado de imobilidade absorta
no cepo de carvalho raiado de negro
a que o caruncho comera o miolo
como as lagartas esvaziam as maçãs
estranhamente quieto murcho resignado
no seu estranho vadiar
os olhos aguados numa tristeza que hoje me dói
como um apelo perdido uma coragem abortada.
Ausência era tão de mágoa urdida tão de fracasso
                                                [tingida
ausência era
altiva e desolada altiva e triste sobretudo triste
tristeza sim tristeza solene e irremediada
só agora o sei.

Às vezes parecia-me uma águia que atravessa os ares
sulco azul
que nada distingue do azul onde foi sulcado
e por isso nem é águia nem ao menos
o que do seu voo resta para que
o sonho se faça real.
Meu pai era um homem com as nostalgias
do que nunca acontecera e isso minava-o víscera a
                                              [víscera
como as tais lagartas esfarelam as maçãs
e então sei-o agora calçava as ágeis sandálias
miraculosamente leves soltas imaginosas
indo de acaso em acaso de astro em astro
eram de vento as suas sandálias fabulosas
levando-o aonde mais ninguém poderia chegar.

Os outros não o sabiam nem eu o sabia
só o víamos sentado no cepo velho
raiado de negro como uma estrela fossilizada
por isso tudo era para ele mais irremediável e triste
sei-o agora tarde de mais
tarde de mais é uma dor de remorso
que me consome víscera a víscera
como as tais lagartas esfarelam as maçãs.
Mas de qualquer maneira existe um segredo
de que ambos partilhamos
ciosamente avaramente indecifradamente
como os astutos conspiradores
que fazem do seu segredo
um mágico tesouro inviolado.

Um segredo simples:
o que sentiste pai
sinto-o eu agora por ambos
sinto-o por ti
sinto-o por mim.

Ainda que por ele devorados.

Fernando Namora, in Nome Para Uma Casa




segunda-feira, 6 de agosto de 2018




O Fermento das Palavras
Vive na Índia um rapaz que caminha com a sombra do avesso.
No seu interior fermentam palavras redondas e felizes à espera de serem soltas como flocos de neve.
A mãe, que é uma mulher extraordinária, aprendeu há muito a viver com a sombra às avessas do filho e dedica agora os dias a apanhar do chão os novelos de palavras que ele deixa cair.
Quando achou que as palavras do rapaz eram já difíceis de transportar na memória, compô-las em cadernos pautados e foi com o filho, as palavras e uma equipa de televisão mostrá-las a uns médicos estrangeiros para que se assombrassem com o génio do rapaz.
Foi uma viagem de muitos quilómetros, e pelo caminho o rapaz deixou cair mais alguns novelos de palavras que ficaram registadas num documentário para que o mundo as conhecesse.
Quando chegaram por fim à presença dos médicos, o rapaz encaracolou ainda mais a sombra, baixou os olhos para se defender do ruído das vozes que o rodeavam e refugiou-se no fermento das palavras que ficaram por nascer.
A mãe afagava a cabeça do filho que se movia para trás e para diante como se as palavras dentro dela precisassem de ser mexidas.
Os sábios ignoraram as pretensões maternas e deram ao rapaz uma barra de chocolate para o tranquilizar. Na embalagem estava escrita a palavra Cadburys.
O rapaz nunca a utilizou num poema.

Adélia Pires
oh não, oh não, oh não,oh não, oh não, ooooohhh
...
Dance with me and kiss me, honey (1965)



o que é do mar se os rios se recusam?

stig dagerman

a ausencia reflectida quando há silencios que falam

... tu tens versos de um amor infinito, que parecem escritos como quem contempla o ser amado a dormir e não o acorda.
tens a doença congénita dos poetas. nasceste com amor a mais num coração de pássaro.

Carlos Campos