quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

É Natal, nunca estive tão só. Nem sequer neva como nos versos do Pessoa ou nos bosques da Nova Inglaterra. Deixo os olhos correr entre o fulgor dos cravos e os diospiros ardendo na sombra. Quem tem assim o verão dentro de casa não devia queixar-se de estar só, não devia. Eugénio de Andrade

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

era já dia quando separei os sonhos. o céu aberto com cheiro de alecrim e do sabor ao teu contorno. "há pássaros que esvoaçam por entre canções perdidas"
eu achava que queria ser poeta, mas no fundo queria ser poema Jaime Gil de Biedma

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

a cake a day, keeps the sadness away
O mistério é só este: involuntária e atenta , a fruta adoça-se. Herberto Helder
A minha maneira de amar-te é simples: aperto-te a mim como se tivesse um pouco de justiça no coração e ta pudesse dar com o corpo Quando te revolvo os cabelos algo de lindo nasce das minhas mãos E não sei quase mais nada. Aspiro apenas a estar contigo em paz e a estar em paz com um dever desconhecido que às vezes me pesa também no coração Antonio Gamoneda
I E sobretudo olhar com inocência. Como se não se passasse nada, o que é certo. II Mas a ti quero olhar-te até que o teu rosto se afaste do meu medo, como um pássaro do limite afiado da noite. III Como uma menina de giz cor-de-rosa num muro muito velho subitamente apagada pela chuva. IV Como quando se abre uma flor e revela o coração que não tem. V Todos os gestos do meu corpo e voz para fazer de mim a oferenda, o ramo que o vento abandona na soleira. VI Cobre a memória da tua cara com a máscara daquela que serás e assusta a menina que foste. VII A noite dos dois dispersou-se com a neblina. É a estação dos alimentos frios. VIII E a sede, a minha memória é da sede, eu em baixo, no fundo, no poço, eu bebia, recordo. IX Cair como um animal ferido no lugar que seria de revelações. X Como quem não quer a coisa. Nenhuma coisa. Boca cosida. Pálpebras cosidas. Esqueci-me. Lá dentro o vento. Tudo fechado e o vento lá dentro. XI Sob o negro sol do silêncio douravam-se as palavras. XII Mas o silêncio é certo. Por isso escrevo. Estou só e escrevo. Não, não estou só. Há aqui alguém que treme. XIII Ainda que diga sol e lua e estrelas refiro-me a coisas que me acontecem. E o que desejava eu? Desejava um silêncio perfeito. Por isso falo. XIV A noite tem a forma de um grito de lobo. XV Delícia de perder-se na imagem pressentida. Levantei-me do meu cadáver, fui à procura de quem sou. Peregrina de mim, fui até àquela que dorme num país ao vento. XVI Minha queda sem fim minha queda sem fim onde ninguém me esperou pois ao olhar para quem me esperava outra não vi senão a mim mesma. XVII Algo caía no silêncio. A minha última palavra foi eu,embora me referisse à aurora luminosa. XVIII Flores amarelas constelam um círculo de terra azul. A água treme cheia de vento. XIX Deslumbramento do dia, pássaros amarelos na manhã. Uma mão desata as trevas, arrasta a cabeleira de uma afogada que não pára de caminhar pelo espelho. Voltar à memória do corpo, hei-de regressar aos meus ossos de luto, hei-de compreender o que diz a minha voz. Alejandra Pizarnik tradução maria sousa