segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

MANUEL CINTRA: para o Mário Botas

Eu conheço o teu mal. É uma pata de fera todos os dias cozida num mundo em berros de metal. Conheço, do fundo dos teus olhos até ao fundo dos meus, um frasco de mitos, roubados aos outros e cozidos em lume brando, ora lume de alegria, ora lume de mal estar. Conheço-te. Pouco, mas bem. És um dos meus mitos, um dos teus. Corres o risco, e depois não o tornas a apagar.
E sei que te dói. Sei que te dói volta e meia quando ris. Quando tudo rebenta e a casa, gaveta por gaveta, voa em pantanas até criar asas e se evaporar. Gostava de comer uma dessas asas. de te dar um embrulho com um beijo e um par de estalos dentro.
— Agora escolhe tu, que não sei se o dia de hoje é fasto ou nefasto.
Trago um lírio no pulmão. Enche-me tanto de luz, que por vezes custa respirar. Tu pareces uma criança. Adoeces e apetecia-me comer-te a doença, com as minhas dentadas que afinal são fracas e permitir que fosses criança em paz e sossego.
O teu sarcasmo é puro sangue.
Não há nada a apontar.
Tenho receio, por vezes, que não entendas. Eu nunca te disse nada. Vi-te no fundo dos teus desenhos, estive para chorar.
Acho apenas que lá na origem, seja ela qual for, vimos de um mesmo campo, com a mesma erva. E se agora não estamos no mesmo plano, se a origem é a mesma, é sorte poder-se encontrar.

Toma lá o embrulho. O beijo. O par de estalos. A escolha.
E que o papel de prenda seja um grande abraço.

Manuel Cintra, 'Para o Mário Botas' [com Raul de Carvalho, Mário Cesariny e Luis Manuel Gaspar], Lisboa, edição dos autores, orientação gráfica de Vitor Silva Tavares, distribuição & etc, 1984


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