quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

o lugar mais antigo é esse onde morremos. porque eu nunca estive cá. penso até que quando nasci quem me pariu foi assim uma enorme roda dentada. começou por dentar-me os pés. depois foi subindo. o ventre todo estraçalhado em metades de mim. arrancou-me o coração do lugar dele e deixou-me assim uma espécie de músculo insone e roxo que mais não faz que bombar sangue. pudesse ligá-lo a um compressor e ir bombar umas paredes. escrevinhar em todo o lado. roubar olhos. mãos. e graffitar em todo o lado. por exemplo nesse lugar aí entre o teu peito e o teu ventre. essa parede onde o meu corpo poderia ter escorrido. deslizar um éme. lentamente deslizar um éme. e depois com a língua buscar-te um ah! redondo, redondo, redondo, em curvas nas curvas dos teus mamilos- lenta lentamente morder um érre na fronteira entre o teu desejo e o teu sexo e vir-me em águas águas quentes com as tuas águas águas brancas e logo um tê : ah! o meu nome bombado do nascer ao morrer do dia. ephemera. ephemera eternidade entre os teus braços. mas o lugar mais efémero é onde nascemos. um mal que carregamos connosco como duas asas. viajei muito de dia correndo atrás de uma noite passada aí à beira do rio onde tu disseste entre malas e palavras que as asas são mãos de largar, de fugir, de tocar e fugir. assim mesmo. é. ter medo. acordar numa cama desconhecida num lugar nenhures entre as mãos de afagar e uns olhos grandes luminosos que dizem uma alma errante. e depois sabemos dos segredos insondáveis que nos escondem da morte. esses mesmo. e como carregar as asas. como. anda, dizes, fiz-te café. regressa aqui a esta casa à beira de mim e senta-te. hoje não há qualquer som que interrompa a tua permanência. o silêncio tem é esta importância de pequenos goles escuros corpo de poeira e asas de aconchegar. é um céu. um abismo do céu à terra. há entre um homem e uma mulher qualquer coisa de redondo céu. uma espécie de casulo. e é preciso dizer que nem todas as borboletas são poeira e nem todas as casas são à beira de um lugar nenhures. não. não interessa. é que se esta não é a casa do medo então aqui poro a poro com a humidez toda feita carne se erguem as paredes pernas os tectos como seios e de chãos mãos. a convulsão de uma casa algures exactamente no lugar onde os teus dedos a desenham polpa a polpa numa impressão de digital importância e a virtualidade de ruas. caminhas por esse lugar como quem chupa o mel de uma mulher: sôfrego urgente. a urgência de chegar: e entras pelo meu corpo assim como se sorvesses o tempo ou o roubasses a esse casulo onde a metamorfose mais lenta acontece: no meu ventre mel o teu sémen é leite e sei que não vou morrer se me ensanguentar dele: uma espécie de imortalidade está toda contida aí na ponta mais perpendicular do teu corpo. gota a gota. e não sei mesmo se não escondes mais algum segredo. vá, deixa que me emprenhe dessa multicolor vontade dessa poeira líquida que o corpo resgata ao céu um teu tempo que aperto entre as coxas: o teu é um corpo molhado e se me encharcares eu juro que a verdadeira metamorfose começa agora: eu conheço-te e senti a tua falta? não sabemos. mas escrevemos, ainda assim. regressamos a essa solidão com que esperamos merecer, imagine-se, a companhia de outra solidão. escrevemos, regressamos. não há outro caminho. não há outro caminho "cancela a minha subscrição para a ressurreição", digo também eu. com as asas no avesso da tua boca. e baby, foda-se se este não é o mal maior de todos: morrer à boca das palavras com asas de quem voa devagarinho dentro de qualquer coisa muito importante. antes mesmo de dizer. é que sempre me feri com a fala dos outros. por vezes ela assemelha-se muito a um estridente grasnar. não oiço. encasulo-me. encasulo-me. dizem coisas. muitas coisas. por exemplo esta é a vida. a puta da vida. é a vida, coragem, coragem. melhores dias virão. tudo tem o seu lado positivo. pois. a vida é a morte que a tem. digo eu. mas eu estou doente. não estou de perfeita sanidade. o lugar comum dizem, como quem explica que o comum é o lugar de nós. não. a minha perfeita insanidade é circular. e abre-se de um casulo da memória do meu corpo com toda a urgência de acontecer. "cancela a minha subscrição para a ressurreição" se não te importas. não tenho medo : prefiro duas asas. entre o dia. e o fim. Marta Cunha Caldeira

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