segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Esse teu mundo, de que te orgulhas tanto, não sei se tem a paz do ramo seco onde a lagarta faz o seu casulo. O corpo, é certo, «todo de olhos feito», é o mais belo e mais sensível fruto da natureza, e a todos causa espanto; e tens, dentro do crânio, um arbusto pensante, prodígio de design e invenção, com que às vezes tu pensas, outras não. E a tua voz, concedo, tem do mel toda a doçura, e o veneno, e não a alcança o chão cantar do grilo, nem o silvo vulgar de aves volantes. Mas vejo como o escondes, esse corpo, e o julgas precioso e permanente, e como perde o brilho com a idade, e se desfaz em nada, de repente; como o mutilas, em silêncio e medo e recusas, e tratos, e contratos, e assim de dia a dia te transformas em fumo fátuo sem calor nem chama. Não assim nós. A vã formiga, mesmo, carregando penedos e montanhas, é mais forte que tu, e mais discreta, e o cru automatismo que vês nela é só mudo louvor da natureza. E tu, da tua voz, a doce, o que fizeste? Que lâminas e pregos lhe puseste; de que arame farpado a rodeaste? Enquanto calados, nós, não nos mentimos tanto. Não que sejamos santos; também eu, o mais sábio de todos os insectos (aracnídeo seria mais correcto; faço-me aqui servir do que me excede), asceta, anacoreta, e confessado adepto de rigorosa dieta vegetal por respeito da vida no universo, às vezes, numa raiva de apetite, lanço os meus fios de caça, e apanho algum bicho menor, algum mosquito, a consumir, de preferência, em verso. Mas vê: está vazio o casulo, aberto por uma ponta, em círculo perfeito, e da lagarta só ficou um resto de pele morta, branca como a tua; vem tu, humano, transformar-te em ave, sem temor nem cautela, e em silêncio; já a conversa fez que me escapasse o voo inaugural da borboleta. António Franco Alexandre

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