quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

As mulheres têm fios desligados

Há uns tempos a Joana,
- Pai, acabei um namoro à homem.
Perguntei como era acabar um namoro à homem e vai a miúda
-Disse-lhe o problema não está em ti, está em mim.
O que me fez pensar como as mulheres são corajosas e os homens cobardes. Em primeiro lugar só terminam uma relação quando têm outra. Em segundo lugar são incapazes de
- Já não gosto de ti
de
- Não quero mais
chegam com discursos vagos, circulares
- Preciso de tempo para pensar
- Não é que não te amo, amo-te, mas tenho de ficar sozinho umas semanas
ou declarações do género de
- Tu mereces melhor do que eu
- Estive a reflectir e acho que não te faço feliz
- Necessito de um mês de solidão para sentir a tua falta
e aos amigos
- Dá-me os parabéns que lá me consegui livrar da chata
- Custou-me mas foi
- Amandei-lhe daquelas lérias do costume e a gaja engoliu
- Chora um dia ou dois e passa-lhe
e pergunto-me se os homens gostam verdadeiramente das mulheres. Em geral querem uma empregada que lhes resolva o quotidiano e com quem durmam, uma companhia porque têm pavor da solidão, alguém que os ampare nas diarreias, nos colarinhos das camisas e nas gripes, tome conta dos filhos e não os aborreça. Não se apaixonam: entusiasmam-se e nem chegam a conhecer com quem estão. Ignoram o que ela sonha, instalam-se no sofá do dia a dia, incapazes de introduzir o inesperado na rotina, só são ternos quando querem fazer amor e acabado o amor arranjam um pretexto para se levantar
(chichi, sede, fome, a janela de que se esqueceram de baixar o estore)
ou fingem que dormem porque não há paciência para abraços e festinhas,
pá, e a respiração dela faz-me comichão nas costas, a mania de ficarem agarradas à gente, no ronhónhó, a mania das ternuras, dos beijos, quem é que atura aquilo? Lembro-me de um sujeito que explicava
- O maior prazer que me dá ter relações com a minha mulher é saber que durante uma semana estou safo
e depois pegam-nos na mão no cinema, encostam-se, colam-se, contam histórias sem interesse nenhum que nunca mais terminam, querem variar de restaurante, querem namoro, diminutivos, palermices e nós ali a aturá-las. O Dinis Machado contava-me de um conhecedor que lhe aclarava as ideias
- As mulheres têm fios desligados
e um outro elucidou-me que eram como os telefones: avariam-se sem que se entenda a razão, emudecem, não funcionam e o remédio é bater com o aparelho na mesa para que comecem a trabalhar outra vez. Meu Deus, que pena me dão as mulheres. Se informam
- Já não gosto de ti
se informam
-Não quero mais
aí estão eles a alterarem a agressividade com a súplica, ora violentos ora infantis, a fazerem esperas, a chorarem nos SMS a levantarem a mãozinha e, no instante seguinte, a ameaçarem matar-se, a perseguirem, a insistirem, a fazerem figuras tristes, a escreverem cartas lamentosas e ameaçadoras, a entrarem pelo emprego dentro, a pegarem no braço, a sacudirem, a mandarem flores eles que nunca mandavam flores, a colocarem-se de plantão à porta dado que aquela puta há-de ter outro e vai pagá-las, dispostos a partes-gagas, cenas ridículas, gritos. A miséria da maior parte dos casais, elas a sonharem com o Zorro, com o Che Guevara ou eles a sonharem com o decote da vizinha de baixo, de maneira que ao irem para a cama são quatro: os dois que lá se deitam e os outros dois com quem sonham. Sinceramente as minhas filhas preocupam-me: receio que lhe caia na sorte um caramelo que passe à frente delas nas portas, não lhes abra o carro, desapareça logo a seguir por chichi-sede-fome-persiana-mal-descida-e-os-ladrões-percebes, não se levante quando entram, comece a comer primeiro e um belo dia
(para citar noventa por cento dos escritores portugueses)
- O problema não está em ti, está em mim
a mexerem na faca à mesa ou a atormentarem a argola do guardanapo, cobardes como sempre. Não tenho nada contra os homens: até gosto de alguns. Dos meus amigos. De Shubert. De Ovídio. De Horácio, de Virgílio. De Velásquez. De Rui Costa. De Einzenberger. Razoável, a minha colecção. Não tenho nada contra os homens a não ser no que se refere às mulheres. E não me excluo: fui cobarde, idiota, desonesto.
Fui
(espero que não muitas vezes)
rasca.
Volta e meia surge-me na cabeça uma frase de Conrad em que ele comenta que tudo o que a vida nos pode dar é um certo conhecimento dela que chega tarde demais. Resta-me esperar que ainda não seja tarde para mim. A partir de certa altura deixa-se de se jogar às cartas connosco mesmos e de fazer batota com os outros. O problema não está em ti, está em mim, que extraordinária treta. Como os elogios que vêm logo depois: és inteligente, és sensível, és boa, és generosa, oxalá encontres etc., que mulher não ouviu bugigangas destas? Uma amiga contou-me que o marido iniciou o discurso habitual
- Mereces melhor que eu
levou como resposta
- Pois mereço. Rua.
Enfim, mais ou menos isto, e estou a ver a cara dele à banda. Nem uma lágrima para amostra. Rua. A mesma lágrima para amostra. Rua. A mesma amiga para uma amiga sua
- O que faço às cartas de amor que me escreveu?
e a amiga sua
- Manda-lhas. Pode ser que lhe façam falta.
Fazem de certeza: é só copiar mudando o nome. Perguntei à minha amiga
- E depois de ele se ir embora?
- Depois chorei um bocado e passou-me.
Ontem jantámos juntos. Fumámos um cigarro no automóvel dela, fui para casa e comecei a escrever isto. Palavra de honra que na janela uma árvore a sorrir-me. Podem não acreditar mas uma árvore a sorrir-me.

© António Lobo Antunes


quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

a pele na pele. as memórias como terra fértil onde mergulho - nutrir-me em ti.


e o meu abraço, chega até aí?

o teu nome. a memória. e as horas.

devia ser assim que começa um poema. ou um romance - como aquele que conheço quando entras dentro de mim e o meu corpo flutua, acima dos pássaros, acima das mãos. onde as palavras se escrevem sobre o teu despenhar em mim. naquele silêncio desenhado e nu, quando invoco o teu nome e tu és todos os homens do mundo.
eras o vento suspenso na ternura quando me abraçavas, virado para o lado da tranquilidade. por dentro do eco do nosso silêncio. desenhando devagar os vocábulos da palma da tua mão no meu corpo. tens esse sabor das pedras redondas e invisíveis dos rios.

[disse-te: entrelaças as letras na memória das palavras]

é o teu nome - o que fica para além da memória das horas
é um mar imenso que se debruça no horizonte.
são os gestos e sentidos, as palavras que me entram no avesso do corpo

[ as palavras onde me fecho, quando os gestos acontecem, quando as linhas das minhas mãos procuram as tuas ].

não há o nome da pressa, nos sentidos por nós respirados e que são na nossa pele a marca dos dias - dentro da noite que se cruza com a vontade.
entendi porque se morre de desejo, porque se entornam os silêncios nas bocas, porque dor se escreve ausência.
trazes nos olhos o sossego que entardece as minhas emoções. abandonamos o lugar que se teima em se deitar connosco. desenhamos na maresia a distância onde cabem todos os caminhos.

desteço-me no futuro,
       sob(re) a pele,
rompo-me no vento
       que estremece no segredo das árvores,

e há estas manhãs de sonhos dentro das minhas mãos.

shhhhh... keep quiet and soften



Just
A musicalidade de algumas palavras orfãs:

Miefe
Arrostolhado
Avagalhoar
Refunfunar.
Espargir
Esborcinada
Restolhar
Tremulina (da caloraça)
Pletórico
Marrafa
Sangradura
Estralar/estralejar
Desarrazoada
Esfacelar
Cinéreo/cinerício
Afestoar
Esmoucar/esboucelar
Esparvar
Álacre
Bácoro
Tropicada
Acrimónia
Açafate
Matorral
Prelado
Errabundo
Safardana
Esbofado
Rojar
Ocelado
Upar
Confutador
Conicina
Ciclamor
Ciclorama
Iriado
Reboar
Aguilhoar
Lobrigar
Acoitar
Obnubilar
Emparvecer/emparvoar

#meninalimão(blog)