quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Do livro "Dois corpos tombando na água"
mas ela não fez o sinal da cruz ao atravessar a rua nem habilitou o coração para a lição cifrada do amor de Deus nas entranhas de qualquer desgraça mas ela deixou o jantar frio como o hálito dele ou um estetoscópio ou a fivela do cinto mas ela deveria entender que o touro investe contra o rubro por instinto e um pedaço de carne descoberto será sempre o superlativo do vermelho mas ela leu no jornal que ela teria gostado e perguntaram “seu telefone estava no modo silencioso quando sua irmã ligou? porque, na página 53, eu gostaria de frisar que você disse que ele estava configurado para tocar. você bebia na faculdade? você estava vestindo um cardigã? qual era a cor do seu cardigã? você se lembra de mais alguma coisa daquela noite? não?” mas ela estava lá fora e era madrugada e isso é um silogismo mas seu corpo (todos eles) de novo como território do colonizador mas ela sabe pelo menos que nunca em momento algum ela nunca disse sim Diego Vinhas (procissão)
Hello, hello, anybody home?
o lugar mais antigo é esse onde morremos. porque eu nunca estive cá. penso até que quando nasci quem me pariu foi assim uma enorme roda dentada. começou por dentar-me os pés. depois foi subindo. o ventre todo estraçalhado em metades de mim. arrancou-me o coração do lugar dele e deixou-me assim uma espécie de músculo insone e roxo que mais não faz que bombar sangue. pudesse ligá-lo a um compressor e ir bombar umas paredes. escrevinhar em todo o lado. roubar olhos. mãos. e graffitar em todo o lado. por exemplo nesse lugar aí entre o teu peito e o teu ventre. essa parede onde o meu corpo poderia ter escorrido. deslizar um éme. lentamente deslizar um éme. e depois com a língua buscar-te um ah! redondo, redondo, redondo, em curvas nas curvas dos teus mamilos- lenta lentamente morder um érre na fronteira entre o teu desejo e o teu sexo e vir-me em águas águas quentes com as tuas águas águas brancas e logo um tê : ah! o meu nome bombado do nascer ao morrer do dia. ephemera. ephemera eternidade entre os teus braços. mas o lugar mais efémero é onde nascemos. um mal que carregamos connosco como duas asas. viajei muito de dia correndo atrás de uma noite passada aí à beira do rio onde tu disseste entre malas e palavras que as asas são mãos de largar, de fugir, de tocar e fugir. assim mesmo. é. ter medo. acordar numa cama desconhecida num lugar nenhures entre as mãos de afagar e uns olhos grandes luminosos que dizem uma alma errante. e depois sabemos dos segredos insondáveis que nos escondem da morte. esses mesmo. e como carregar as asas. como. anda, dizes, fiz-te café. regressa aqui a esta casa à beira de mim e senta-te. hoje não há qualquer som que interrompa a tua permanência. o silêncio tem é esta importância de pequenos goles escuros corpo de poeira e asas de aconchegar. é um céu. um abismo do céu à terra. há entre um homem e uma mulher qualquer coisa de redondo céu. uma espécie de casulo. e é preciso dizer que nem todas as borboletas são poeira e nem todas as casas são à beira de um lugar nenhures. não. não interessa. é que se esta não é a casa do medo então aqui poro a poro com a humidez toda feita carne se erguem as paredes pernas os tectos como seios e de chãos mãos. a convulsão de uma casa algures exactamente no lugar onde os teus dedos a desenham polpa a polpa numa impressão de digital importância e a virtualidade de ruas. caminhas por esse lugar como quem chupa o mel de uma mulher: sôfrego urgente. a urgência de chegar: e entras pelo meu corpo assim como se sorvesses o tempo ou o roubasses a esse casulo onde a metamorfose mais lenta acontece: no meu ventre mel o teu sémen é leite e sei que não vou morrer se me ensanguentar dele: uma espécie de imortalidade está toda contida aí na ponta mais perpendicular do teu corpo. gota a gota. e não sei mesmo se não escondes mais algum segredo. vá, deixa que me emprenhe dessa multicolor vontade dessa poeira líquida que o corpo resgata ao céu um teu tempo que aperto entre as coxas: o teu é um corpo molhado e se me encharcares eu juro que a verdadeira metamorfose começa agora: eu conheço-te e senti a tua falta? não sabemos. mas escrevemos, ainda assim. regressamos a essa solidão com que esperamos merecer, imagine-se, a companhia de outra solidão. escrevemos, regressamos. não há outro caminho. não há outro caminho "cancela a minha subscrição para a ressurreição", digo também eu. com as asas no avesso da tua boca. e baby, foda-se se este não é o mal maior de todos: morrer à boca das palavras com asas de quem voa devagarinho dentro de qualquer coisa muito importante. antes mesmo de dizer. é que sempre me feri com a fala dos outros. por vezes ela assemelha-se muito a um estridente grasnar. não oiço. encasulo-me. encasulo-me. dizem coisas. muitas coisas. por exemplo esta é a vida. a puta da vida. é a vida, coragem, coragem. melhores dias virão. tudo tem o seu lado positivo. pois. a vida é a morte que a tem. digo eu. mas eu estou doente. não estou de perfeita sanidade. o lugar comum dizem, como quem explica que o comum é o lugar de nós. não. a minha perfeita insanidade é circular. e abre-se de um casulo da memória do meu corpo com toda a urgência de acontecer. "cancela a minha subscrição para a ressurreição" se não te importas. não tenho medo : prefiro duas asas. entre o dia. e o fim. Marta Cunha Caldeira
self-burial (© Keith Arnatt, 1969)
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O silêncio é como se fosse água. Daquela água pura da montanha que se bebe directamente pelo coração. Jorge Sousa Braga