segunda-feira, 7 de outubro de 2019
é madrugada. devagarinho esperei, meio corpo debruçado sobre a vida inteira, que o poema surgisse. que a distância do meu corpo às horas impossíveis fosse o grito que antecede o fim - ténue.
na pele, reverbera a memória que arde quando penso o tempo, desaprendidos os
[meus]
vazios na tentativa do sonho. os medos devorados pelas veias devastadas no fluxo dos
[teus]
olhos.
esperei, meio corpo debruçado sobre o amanhecer contínuo, a vida que me deixa sempre num improviso - no côncavo das mãos, no sopro ao meu ouvido.
um dia,
[meio corpo]
debruçada sobre o futuro, confundirei pele e água, ritos e acordares contigo nos lábios. olharei a vida, em que me debruço
[meio corpo]
entre os silêncios de gestos parados.
[meio corpo],
debruçada no percurso esperado, vou escrever-te todos os amanheceres, todos os abraços que me deste ao vento, todos os sorrisos atabalhoados de emoções. tudo o que desaprendi no eco da minha garganta - em cada palavra, o teu nome respirar - todos os dias, tantos dias, um dia
[este dia]
vou amar-te sempre e escrever para dentro de ti a anatomia do silêncio.
domingo, 6 de outubro de 2019
estou aqui a ser a tua ausência. pesas-me nos lábios como se nascesses de novo de uma metáfora antiga. as mãos abertas [as tuas, as minhas], para conseguir-te mais dentro do vento a atravessar a pele. é a água que sai do corpo e é um rio, é o teu nome, a memória e as horas no desapertar do abraço. dispo-me de ti numa língua que o meu corpo entende. apago a memória do agora, com as palavras a rasgar até ao osso. és o indicativo do verso que declino por dentro da pele, em fome e sede, no poema que nasce no céu da boca. do peito que fica cheio
[é difícil o respirar]
quando cravo os dedos
[gastos]
, na escrita que irrompe voraz no teu corpo. escrevo a língua dos vocábulos, a sílaba do amor quando o verso cresce em paredes que me derrubam.
para conseguir-te mais dentro - do poema.
"houvesse alguém capaz de recordar a dor. ninguém. é apenas possível recordar-se a sua ocasião e os seus acessórios. bem como os prazeres. nunca te será possível recordar a sua qualidade efectiva. não há uma recriação do momento. isto é para o bem ou para o mal. assim, as dores e os prazeres são novos de cada vez que os provamos."
Marta Gil
sexta-feira, 27 de setembro de 2019
"Encosto-me ao teu calor como gato à luz do sol. Lambo-te devagar o dorso e cheiro-te os cantos do corpo, em busca dos odores que me confirmam a tua humanidade.
Gosto de esconder os lábios no côncavo do teu braço e tactear com a língua os teus lábios, roubando-te o sentido às palavras e recolhendo, um a um, os sons com que soçobras nos meus braços.
Afago o rosto na penugem que envolve a pele da tua mão, as veias em sulcos, os dedos cegos pelo meu corpo a encherem-no de arrepios frescos como brisas de verão.
Cerro os olhos nos teus e afasto-me rapidamente, de corpo agitado e orelhas em riste, sempre que alguma mosca entra no quarto."
A Empregada de Mesa, in "Fanny Ardant vem Jantar"
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