segunda-feira, 16 de dezembro de 2019
A minha maneira de amar-te é simples:
aperto-te a mim
como se tivesse um pouco de justiça no coração
e ta pudesse dar com o corpo
Quando te revolvo os cabelos
algo de lindo nasce das minhas mãos
E não sei quase mais nada. Aspiro apenas
a estar contigo em paz e a estar em paz
com um dever desconhecido
que às vezes me pesa também no coração
Antonio Gamoneda
I
E sobretudo olhar com inocência. Como se não se passasse nada, o que é certo.
II
Mas a ti quero olhar-te até que o teu rosto se afaste do meu medo, como um pássaro do limite afiado da noite.
III
Como uma menina de giz cor-de-rosa num muro muito velho subitamente apagada pela chuva.
IV
Como quando se abre uma flor e revela o coração que não tem.
V
Todos os gestos do meu corpo e voz para fazer de mim a oferenda, o ramo que o vento abandona na soleira.
VI
Cobre a memória da tua cara com a máscara daquela que serás e assusta a menina que foste.
VII
A noite dos dois dispersou-se com a neblina. É a estação dos alimentos frios.
VIII
E a sede, a minha memória é da sede, eu em baixo, no fundo, no poço, eu bebia, recordo.
IX
Cair como um animal ferido no lugar que seria de revelações.
X
Como quem não quer a coisa. Nenhuma coisa. Boca cosida. Pálpebras cosidas. Esqueci-me. Lá dentro o vento. Tudo fechado e o vento lá dentro.
XI
Sob o negro sol do silêncio douravam-se as palavras.
XII
Mas o silêncio é certo. Por isso escrevo. Estou só e escrevo. Não, não estou só. Há aqui alguém que treme.
XIII
Ainda que diga sol e lua e estrelas refiro-me a coisas que me acontecem. E o que desejava eu? Desejava um silêncio perfeito.
Por isso falo.
XIV
A noite tem a forma de um grito de lobo.
XV
Delícia de perder-se na imagem pressentida. Levantei-me do meu cadáver, fui à procura de quem sou. Peregrina de mim, fui até àquela que dorme num país ao vento.
XVI
Minha queda sem fim minha queda sem fim onde ninguém me esperou pois ao olhar para quem me esperava outra não vi senão a mim mesma.
XVII
Algo caía no silêncio. A minha última palavra foi eu,embora me referisse à aurora luminosa.
XVIII
Flores amarelas constelam um círculo de terra azul. A água treme cheia de vento.
XIX
Deslumbramento do dia, pássaros amarelos na manhã. Uma mão desata as trevas, arrasta a cabeleira de uma afogada que não pára de caminhar pelo espelho. Voltar à memória do corpo, hei-de regressar aos meus ossos de luto, hei-de compreender o que diz a minha voz.
Alejandra Pizarnik
tradução maria sousa
Esse teu mundo, de que te orgulhas tanto,
não sei se tem a paz do ramo seco
onde a lagarta faz o seu casulo.
O corpo, é certo, «todo de olhos feito»,
é o mais belo e mais sensível fruto
da natureza, e a todos causa espanto;
e tens, dentro do crânio, um arbusto pensante,
prodígio de design e invenção,
com que às vezes tu pensas, outras não.
E a tua voz, concedo, tem
do mel toda a doçura, e o veneno,
e não a alcança o chão cantar do grilo,
nem o silvo vulgar de aves volantes.
Mas vejo como o escondes, esse corpo,
e o julgas precioso e permanente,
e como perde o brilho com a idade,
e se desfaz em nada, de repente;
como o mutilas, em silêncio e medo
e recusas, e tratos, e contratos,
e assim de dia a dia te transformas
em fumo fátuo sem calor nem chama.
Não assim nós. A vã formiga, mesmo,
carregando penedos e montanhas,
é mais forte que tu, e mais discreta,
e o cru automatismo que vês nela
é só mudo louvor da natureza. E tu,
da tua voz, a doce, o que fizeste?
Que lâminas e pregos lhe puseste;
de que arame farpado a rodeaste? Enquanto
calados, nós, não nos mentimos tanto.
Não que sejamos santos; também eu,
o mais sábio de todos os insectos
(aracnídeo seria mais correcto;
faço-me aqui servir do que me excede),
asceta, anacoreta, e confessado adepto
de rigorosa dieta vegetal
por respeito da vida no universo,
às vezes, numa raiva de apetite,
lanço os meus fios de caça, e apanho
algum bicho menor, algum mosquito,
a consumir, de preferência, em verso.
Mas vê: está vazio o casulo, aberto
por uma ponta, em círculo perfeito,
e da lagarta só ficou um resto
de pele morta, branca como a tua;
vem tu, humano, transformar-te em ave,
sem temor nem cautela, e em silêncio;
já a conversa fez que me escapasse
o voo inaugural da borboleta.
António Franco Alexandre
Amanheci em cólera. Não, não, o mundo não me agrada. A maioria das pessoas estão mortas e não sabem, ou estão vivas com charlatanismo. E o amor, em vez de dar, exige. E quem gosta de nós quer que sejamos alguma coisa de que eles precisam. Mentir dá remorso. E não mentir é um dom que o mundo não merece...
Clarice Lispector
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