quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

24A, excerto II (Claúdia R. Sampaio)

Gosto do cheiro da ambulância. Faz-me esquecer os
gritos da velha do quarto de São José
“Filho da puta, morre, morre!”
Amei, como se toda a vida bastasse, aquele enfermeiro de
seringa salvífica
A velha adormeceu entre a cara atravessada de cuspo e
o meu sorriso idêntico
Como é bela esta velha e a sua face cheia de pêlos
lembrando um kiwi
Da cama ao lado embalo-a sem me mexer
Dorme, velha, dorme, do teu sono de cheiro a poentes,
lembrando mortes

TAC à cabeça, análises ao sangue e à urina, electrocardiograma,
a mão do enfermeiro pousada sobre o meu ombro
E diz-me, calado: “Vai ficar tudo bem, está pronta para
viver mais um pouco.”
Sabe doutora, não sei se consigo, logo se vê.
A minha mãe estava zangada ao telefone, não me
perdoa que seja este atónito corpo em falta de si mesmo,
deslizante cavalo alado numa confortável cadeira-de-rodas

Gosto do cheiro da ambulância
as duas companheiras anónimas estão amarradas e
tremem a cada curva como duas labaredas cinzentas,
receosas de serem cuspidas ao grande vácuo
“Agora é que vamos mesmo morrer”
Como é bela esta imagem de duas camas psiquiátricas a
descarrilarem numa via-rápida, matando tudo!

Aqui não se pode fumar e não vejo mais nada
que possa fazer até ao último triunfo do meu corpo
despejado na bacia de uma cama que não conheço
Fixo as cabeças oscilantes das minhas companheiras que
nem os comprimidos anestesiam de tão ciclópica viagem
Se querem morrer, façam-no pela via-rápida!
Não vejo melhor metáfora enquanto me perco no soro

Pela pequena janela observo candeeiros e o topo de prédios
As pessoas nas suas casas sendo tristes,
quem sabe raríssimas sejam até felizes e sejam até pessoas,
tão inexistentes como muitas léguas no deserto
E como eu invejo quem resiste a mais uma fruteira vazia,
depois de ter apostado tudo
Como eu invejo a naturalidade com que aqueles corpos
conseguem até deslocar-se na rua, despejados de orgulho
e amor e espanto
E como invejo a não vida de quem pensa que a tem, sendo
alma tapada a betume
Vejo-as através dos pequenos vidros e quero chorar, merda,
quero chorar
Aquelas pessoas achando que a vida é um lugar onde se vive

Afinal a travagem é suave
Expulsam-me da grande caixa alta com rodas e luz
“Já posso fumar?” Ainda não, ainda não.
É melhor ir para dentro porque está frio no último dia de
Outubro e a minha bata transparente não se compadece com
a minha vontade.
Ainda quero chorar, viro a cara para o escuro onde sei que
estão as árvores
A campainha toca insistente, é tarde, os doentes já estão
deitados e os enfermeiros vão certamente na terceira cartada
de Sueca
Ninguém vem, talvez possa ir para casa.
Despejei uma lágrima, ninguém viu, como é que saio daqui?
Estou indecisa entre fumar ou morrer
Não sinto o corpo, talvez fumar seja mais difícil
Mas a porta abre e uma auxiliar leva-me pela escadaria,
lá vou eu, ascendente ao céu onde depositarei as minhas
gargalhadas.
Já sinto o sabor do tabaco debaixo da língua.


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