sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

às vezes não sei o que te dizer e fico com as palavras guardadas cá dentro. como se ao dizê-las fosse quebrá-las, roubar-lhes a grandiosidade. como se a minha noite permanecesse muito para além da escuridão, muito para além do dia, muito para além da vida.

às vezes há coisas que não digo, mas que nunca esqueço: a casa que são as tuas mãos e o teu corpo, a tua mão na minha mão, os teus olhos a chamarem-me, o teu sorriso a invadir-me. o teu abraço - sonho sempre com o teu abraço. e não me canso. do teu peito no meu peito a atear-me as cicatrizes. o meu peito a tatuar-se no teu.

perguntas em que é que penso e eu digo que penso em nada. faço do meu corpo um espaço de silêncio, como se o nada abarcasse o pensamento de quem ama. como se fosse maior do que o nada em que o mundo se torna. esta estranha raiz que cresce em direcção à tua ausência - não quero dizer. não quero dizer todas as imagens, ou todos os tons da tua voz que ainda não sei como escrever. não sei escrever as tuas mãos, não posso escrever as tuas mãos. não posso escrever o beijo. não sei escrever o abraço.

conseguirei estancar esta agonia que me faz sofrer constelações?

(tenho a vida intermitente do voo sob a palavra)
sei do tanto que tenho para te dizer, do debruçar no poema, na possibilidade da queda - escorregar pelos cabelos,

len
ta
men
te,

nos dias de veias ardidas.

são os caminhos solitários

[por dentro de mim],

 cada vez que te quero dizer que gostaria de te amar, no ousar dos corpos entrelaçados debaixo dos lençóis.

tenho esta dor que se escreve e me atravessa, nas arestas do tempo

[ a dor que fala, que por vezes grita]

, a fracção de desejo e saliva, a deixar reticências sobre a pele.
as promessas ritualizadas no país habitado pelo amor que se escreve cinza e silêncio.

[o corpo, no avesso das emoções.
o pensamento, na distância de asas abertas]

e o amor que sinto por ti, é a pele a voar mar adentro da memória
o amor, por que esperei, e que será meu para sempre

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

às vezes acordo com um deserto obscuro na pele. digo-te que tens as mãos presas numa linguagem que nem eu entendo. sacode-se o silêncio que abriga o teu rosto, a nudez que é a alvorada - em cada sussurro, em cada voo.

prendo a respiração

 [o sangue a correr às golfadas, a pele cerzida na medida exacta de existir um corpo dentro do sonho].

 o chão duma memória por dentro dos cheiros, da pele, das mãos, da língua, dos lábios, dos dentes - fronteiras que se invadem quando as mãos se tocam.

respiro. dizes que não devias ter-me olhado nos olhos, que há uma loucura plena de poemas corpóreos e saliva - e que há uma canção que se renova na margem da pele em cada noite.



" Foi você que me ensinou a ternura da vida. (...)
A verdade é que a vida sem ternura não é lá grande coisa."

(o meu pé de laranja lima)


quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

estás aqui. na memória da minha pele, na memória das minhas mãos.

depois de ti, há histórias que continuo a querer contar. como daquela vez em que fiz do teu corpo jangada. e hoje escreveria a nossa ternura exactamente com as mesmas letras

nutrir-me-te-nos das tuas raízes, sentir o cheiro do verde, e deixar-nos perder no silêncio dos dias.


terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Quero dar-vos de beber. Um copo de vinho, generoso, dócil. Não tenhais receio se a avidez tomar conta das vossas gargantas. Dir-vos-ei palavras-cacho, servas da vossa sede, como na vinha do Senhor. Façamos um brinde. À anunciação do filho, que o meu ventre tratará de gerar, como uma paisagem à janela da carruagem que floresce olhos dentro. Gosto muito de andar de comboio. Cabem-lhe tantas histórias, daquelas que se amparam no colo, como a um recém-nascido. Tantos órfãos ali jogados nos assentos, um choro inaudível corre-lhes à pele. Deixai-me abraçar-vos, na impossibilidade de acorrer a todos os enjeitados. Um novo copo, a reverberação do cristal, o brasume dos corpos como toros à lareira. As velas deste lar ardem para lá do fim, acende-as um sopro das bocas que se dão na eternidade.

Ouvis o berreiro? É o choro do meu filho acabado de nascer. Gerou-o o cheiro da terra humedecida pelo orvalho nocturno. Como é intenso e alegre e reconfortante. Bebamos.

Sou um homem-vide. Podo-me e enxerto-me e logo novos rebentos brotam. Estou-vos grato pela chuva e pelo sol que me trazeis nas faces das mãos. Amei uma mulher logo a partir das mãos. As linhas traziam-me a seiva de todas as viagens a que é necessário fundarmo-nos. Ainda a amo, porquanto nunca se parte desse lugar onde o ser se consubstancia. É uma profecia que a alma faz cumprir ao longo de várias vidas.

 Estão vazios os vossos copos. Deixai que se inclinem para a nascente, como o cálice para a vida eterna, como a boca do recém-nascido para o túmido mamilo do seio materno. 

Pelas gavetas há fotografias em que vestia as roupas de ver a Deus. Contudo, vi-o em mim quando apenas um lençol cobria a ressurreição do meu corpo. Vede as minhas cicatrizes. Não tenhais medo, só mordem por dentro. Continuam tão vivas como quando eram um golpe aberto. Como os veios que ainda sangram na terra em que as nascentes secaram.

Tenho de aprender uma canção de embalar. Nasceu o meu filho e não sei nenhuma. Não recordo alguma que me tenha sido sussurrada ao ouvido. Ah, uma canção de ninar. Houve uma criança que para adormecer o irmão tinha de lhe acariciar as pálpebras, como se estivesse a polir uma relíquia, invocando o senhor do sono. Como são preciosos os gestos da intimidade. Se nos desleixamos, ficam na eminência de cair, como a jarra na beira da mesa. Um pequeno tremor e estilhaçam-se em minúsculos cristais no chão, como lágrimas rebrilhando de dor.

Na verdade não sei o que tenho estado para aqui a dizer-vos. Sim, celebro a arte da amizade com o vinho. É cada vez mais um acto de coragem, o de nos embebedarmos dos amigos à mesa. Uma narrativa grávida de lentidão, como o gesto de esperar o fotográfico. A garrafa e os copos vazios, marcados de nós, lábios e dedos, serão a prova de que existimos para lá do instante.

Festas Felizes para todos

Hélder Magalhães


atropelamento

Quando eles dizem
"morreu rebentada por dentro"
querem dizer
que o coração se moveu do esquerdo
ao lado direito do peito
que o impacto se sentiu no pulmão
onde o coração entrou e ficou escondido
palpável à língua
Que o fígado acidulado por um último jantar
se lançou em espuma contra as costas
e negra da noite ao avesso
a caixa torácica perdeu o abaule
o orgulho
as flores como pétalas de osso quebraram
por todo o dentro de cinco sentidos
Em todo o caso o corpo
ficou incólume
sentado na estrada
desviado apenas do lugar
onde esteve o baque da alma

Andreia C. Faria, in Flúor